Aconteceu em Ipanema, na manhã de 10 de maio de 2022. Repito: de 2022, não de 1933. E numa praça da Zona Sul do Rio de Janeiro, não na Bebelplatz ou logradouro similar de Berlim sob dominação nazista. Não presenciei o fait divers, mas conheço bem quem o vivenciou e dele me deu conta: minha fisioterapeuta. Estava ela numa das mesas da varanda do Armazém do Café da Praça Nossa Senhora da Paz, a tomar seu expresso enquanto lia o romance Anna Karenina, quando um quarentão alto e de boa aparência aproximou-se dela e, espichando o braço, alcançou o livro, que só largou depois de lhe ver a capa, com o título e o nome do autor. “Por que você tá lendo esse livro comunista?”, cobrou o desconhecido. Entre assustada com a súbita intrusão do estranho e pasma com sua desfaçatez e crassa ignorância, minha amiga retrucou: “Tolstoi comunista?! Mas ele morreu antes da Revolução Soviética.”
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Verdade que Tolstoi poderia ter tomado conhecimento do Manifesto Comunista antes mesmo de iniciar sua produção literária, mas àquela altura ele já estava comprometido ideologicamente com o anarquismo cristão, além de encasquetado com a ideia de um romance envolvendo adultério, suicídio e uma romântica dama da aristocracia czarista. Muita gente boa (Faulkner, Nabokov) considera Anna Karenina o melhor romance de Tolstoi e quase nenhum deles desperdiçou tinta comparando-o a Madame Bovary, quando nada porque o tema predominante em Anna Karenina são as contrastantes concepções de felicidade, por ele condensadas na abertura do livro. Bem, é possível que o bully que buliu com minha amiga tenha confundido Tolstoi com Trotski; hipótese plausível, a julgar pelo seu esbregue, que em seguida cresceu em decibéis, até culminar com uma suposição (“Já sei: você é eleitora do Lula!”) e uma ameaça: “Isso vai acabar!” Isso o quê? Eleições? Poder ler escritores russos? Poder ler Tolstoi? Poder ler Anna Karenina tomando café em público? Resumo da ópera: minha amiga foi assediada por um lídimo neonazista brasuca, tão ignorante e ultrajante quanto aqueles folclóricos meganhas da ditadura militar que apreenderam uma edição de O Vermelho e o Negro, de Stendhal, pensando tratar-se de uma obra de doutrinação comunista, embora fosse mais lógico tomá-la por uma história do Flamengo. Conhecemos bem essa gente. Seus ancestrais, se não surgiram, vicejaram frondosamente no Terceiro Reich, onde, mal instalado o regime nazista, 25 mil exemplares de livros de Marx, Freud, Kafka, Thomas Mann e outros “subversivos” foram incinerados em praça pública sob o patrocínio do ministro mais poderoso de Hitler. Todo 10 de maio, aquele sinistro auto de fé é lembrado com repúdio na Alemanha. Aqui não lhe faltam homenagens, ainda que involuntárias e sem tochas na mão.