Um ressabiado admirador de Pablo Neruda me pede explicações para a queda de prestígio do bardo número uno do Chile e sua substituição por Gabriela Mistral na preferência da juventude e do mulherio de lá, surpreendente revertério a que o New York Times deu ressonância internacional nos últimos dias de janeiro.
Simples: o segundo chileno agraciado com o Nobel de Literatura não perdeu a liderança por sua performance como poeta, mas por seu comportamento como homem e marido. Além de ter abandonado sem dó a primeira mulher, Maryka, e uma filha doente (hidrocefalia), Neruda estuprou uma jovem tamil que lhe servia de faxineira na Embaixada do Chile no Sri Lanka. Não era sopa o simpaticão e mulherengo autor de Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada. Esses episódios, não escamoteados pelo próprio Neruda em suas memórias, também explicam por que o Congresso chileno negou apoio a uma proposta de rebatizar o aeroporto de Santiago com o nome do poeta.
Outro poeta, o americano T.S. Eliot, escondeu a mulher num hospício. O fato de Vivien ser bipolar ou esquizofrênica, “doidinha”, segundo Virginia Woolf, não redime a impiedade do poeta, um tremendo misógino, para quem as mulheres, além de “sexuadas em demasia”, eram “malcheirosas”. Um incel não teria dito de outra forma.
Não pensem que os prosadores são companheiros mais pacientes, solidários e afetuosos que os poetas. Vários romancistas de renome agrediram suas companheiras e me parece plausível supor que alguns tenham beirado o feminicídio.
O exemplo clássico é Norman Mailer, “prisioneiro do culto da virilidade”, agressivo verbalmente mesmo com as mulheres que não iam para a cama com ele. Das que foram, ao menos uma acabou esfaqueada no pescoço. Mas saiu com vida, ao contrário de Hélène Rytman, a companheira de Louis Althusser, estrangulada pelo filósofo no clímax de um surto psicótico.
Herman Melville abusava física e psicologicamente de Elizabeth Shaw, desonra só descoberta em uma carta de 1867 e confirmada por um pastor religioso que, compadecido das queixas da sra. Melville, planejou sequestrá-la, para salvá-la da sanha uxoricida do marido. Protótipo do machão literário, Hemingway preferiu maltratar as mulheres em sua ficção, reservando-lhes personagens em geral secundários e anódinos. Nesse quesito perdeu sempre para o rival F. Scott Fitzgerald, vítima permanente de seus bullyings machistas.
Mailer sentia-se herdeiro de uma tradição que remonta a Hemingway e retoma fôlego com David Foster Wallace, que a rigor só parou de infernizar a vida da poeta e memorialista Mary Karr (invadiu sua casa, perseguiu seu filho de 5 anos, ameaçou jogá-la para fora de um carro em movimento) quando, seguindo o mestre, decidiu encarar o único problema filosófico realmente sério, na avaliação de Camus. Sem disparar um tiro. Com apenas uma corda, ao redor do pescoço.
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