Hoje à noite, em tempos idos, bem idos, meu destino seria o Silvestre, no extremo alto de Santa Teresa, a Montmartre carioca. Era lá que rolava a melhor virada do ano no Rio, organizada pela dupla Jaguar-Albino Pinheiro. Imperdível e rigorosamente democrática, à parte animadíssima e apinhada de gente bonita e inteligente, era uma festa aditivada por álcool de graus variados e velhos sucessos carnavalescos.
O inverso das ceias natalinas, usualmente familiares, tendendo ao morigerado e ao enfadonho, o réveillon leva a vantagem de ser uma celebração pagã em que a gente se diverte como o diabo gosta.
O cinema mitificou ambas as festas, com bons (e geralmente maus) melodramas. Tenho pra mim que os filmes natalinos, sobretudo aqueles com tentativas de suicídio (A Felicidade Não se Compra, Adorável Vagabundo), seriam ainda mais tristes se embalados pela valsa Auld Lang Syne (Canção de Despedida, na versão brasileira), como acontece nos réveillons hollywoodianos. Ela faz toda a diferença.
A despeito da melancólica e indefectível valsa, os filmes de ano-novo costumam ser mais “pra cima” que os de Natal, inclusive porque com frequência pontuados por venturosos encontros, reencontros e ajustes de contas amorosos, alguns clássicos, como os de Se Meu Apartamento Falasse e Harry e Sally - Feitos um para o Outro.
Por mais que romances água com açúcar predominem sobre os retratos literários menos românticos e fantasistas da última noite de dezembro, o que há de ficar não serão os diários de Bridget Jones, mas o réveillon pessoal, a renascença, de Nora ao fechar pela última vez a porta da sua “casa de boneca”.
E não só o teatro de Ibsen nos virá à memória, mas também a ficção de Chekhov (O Espelho), George Eliot (Middlemarch), Nick Hornby (Uma Longa Queda) e Zadie Smith (Dentes Brancos), que, por sinal, começa com uma tentativa de suicídio bem distinta das fraquejadas de Gary Cooper e James Stewart naqueles dois filmes de Frank Capra, acima mencionado.
A noite de 31 de dezembro me evoca, especialmente, um conto de Rubem Fonseca, que nem é dos melhores dele, mas sem dúvida o que mais fama e dissabores lhe deu.
Se Machado captou a essência da noite natalina no conto Missa do Galo, Fonseca fez de Feliz Ano Novo, título e primeira das 15 histórias de sua quarta coletânea de narrativas curtas, publicada em 1975, a mais crua prosa sobre a violência urbana tendo como pano de fundo uma festa de réveillon, no caso, de um lar grã-fino da zona sul carioca.
A ditadura do general Geisel não gostou da pauleira tarantinesca descrita no livro, confiscou todos os exemplares, e Feliz Ano Novo teve de esperar 13 anos para ser liberado e voltar a ser o que era antes da proibição: um best-seller. Creio que não preciso acrescentar que o conto continua atualíssimo.
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