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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião | Paul Auster e seus Austeregos - e como o escritor se tornou um dos meus vícios literários

Paul Auster, que morreu no último fim de semana, foi um experimentalista altamente legível, um ourives de thrillers intelectualizados, cheios de alusões literárias, históricas e culturais, cuja fruição, todavia, não exige que seus leitores sejam eruditos

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Foto do author Sérgio Augusto

A bruxa anda à solta. Perdi três grandes amigos de roldão, no espaço de 24 horas, no último fim de semana, e já comecei esta surpreendido pela morte de Paul Auster, um de meus vícios literários no último fim de século.

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Comecei, como quase todo mundo, pelas três labirínticas, imbricadas e especulares histórias de A Trilogia de Nova York. Aquelas intrigas policiais como que engendradas por Kafka, Borges e Calvino para Hitchcock filmar, aquele jeito americano de escrever como um europeu pós-modernista (talvez o melhor que se poderia esperar de Georges Perec caso este se metesse a parodiar Raymond Chandler) nos pegaram de jeito e nos tornaram adictos por mais tempo do que as modas literárias costumam impor. E pensar que a primeira história da trilogia (Cidade de Vidro) foi a princípio rejeitada por 17 editoras.

Fácil explicar o sucesso do escritor, inclusive ou sobretudo em Paris, onde o jazz, o filme noir, Jerry Lewis e Woody Allen reinam até hoje. Auster é um experimentalista altamente legível, um ourives de thrillers intelectualizados, cheios de alusões literárias, históricas e culturais, cuja fruição, todavia, não exige que seus leitores sejam eruditos, habilitados a identificar, por exemplo, todas as referências lunares (Cyrano de Bergerac, Jules Verne, etc.) de Palácio da Lua, seu romance de 1989.

Mas é claro que terá outro sabor quem souber por que Quinn, o romancista de Cidade de Vidro, assina seus livros com o nom de plume William Wilson (o paradigmático duplo de Edgar Allan Poe) ao mesmo tempo que assume a falsa identidade de... Paul Auster.

Paul Auster em 2006; o escritor americano morreu aos 76 anos Foto: Bebeto Matthews/AP

Um espelho defronte outro, multiplicando personagens obsessivos e alter egos (ou melhor, Austeregos) igualmente aflitos, tragados por situações enigmáticas e surreais – eis aí, em apenas 20 palavras, a essência da autoficção austeriana, praticamente as mesmas aplicáveis, com alterações mínimas, às narrativas do catalão Enrique Vila-Matas.

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Seus temas orbitam, obstinadamente, ao redor de memórias, crises de identidade, perdas, desilusões, progênie, orfandade e morte. Seu último romance, Baumgartner, publicado ano passado, fala das aflições de um viúvo que sonha ter recebido um telefonema da mulher, morta há nove anos. Mais que uma história de amor, uma história da eternidade do amor.

Em determinado trecho de seu Diário de Inverno, publicado em 2012, Auster admirava-se de haver chegado aos 65 anos (“ao inverno de minha vida”), a despeito de todas as doenças que lhe minaram o corpo ao longo da vida, e se perguntava, angustiado, quantas manhãs ainda lhe restariam ao lado da mulher (a escritora Siri Hustvedt) e dos filhos.

Só na última terça-feira ficamos sabendo que, afinal, não lhe restava mais do que uma dúzia de anos na “Cancerlândia”, que era como, ultimamente, passou a chamar os Estados Unidos da América.

Opinião por Sérgio Augusto

É jornalista, escritor e autor de 'Esse Mundo é um Pandeiro', entre outros

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