Minha reação inicial foi, equivocadamente, de rejeição. Apesar de não ter paciência para acompanhar seriados, tomei coragem, mas não aguentei ir além do terceiro episódio de Ripley. Todo mundo a babar de admiração pelo hit da Netflix, e eu precocemente desencorajado por seus longueurs e por seu quase narcisístico tratamento visual.
Cheguei até a esboçar uma questionável comparação com a primeira aventura na tela do sociopata criado por Patricia Highsmith: em O Sol por Testemunha, René Clément dera conta da mesma intriga em duas horas, ao passo que Steven Zaillian consumiu 400 e poucos minutos nos oito episódios de Ripley.
Noves fora as cores, o charme e a beleza dos três protagonistas (Alain Delon, Maurice Ronet, Marie Laforêt) do primeiro e a trilha musical de Nino Rota, elementos que ajudaram a transformar Plein Soleil em cult movie 63 anos atrás.
Afetação geracional ou não, alguns amigos meus chegaram a adotar entre si a frase “Signor Ripley, teléfono!”, a fatídica chamada que fecha o filme de Clément e precede a prisão de Alain Delon (Ripley), como um bordão equivalente ao clássico “sua mãe subiu no telhado”. Os mais abonados se mandaram para a Costa Amalfitana, na Itália, para visitar Mongibello, o sedutor vilarejo tirreno onde Ripley conclui o golpe em Greenleaf e usurpa sua identidade.
Estes só não quebraram a cara porque, no lugar de Mongibello, invenção de Highsmith, ao menos encontraram Ischia Ponte, no golfo de Nápoles, a encantadora locação tão bem explorada pela câmera de Henri Decae.
Decae brilha igualmente em cenas de interior, como a do assassinato de Freddy (Bill Kearns), arrematada por uma tomada de legumes de feira espalhados pelo chão, ao lado do cadáver, que me evocou uma natureza-morta – no caso, duas.
O permanente contraste entre a solaridade das imagens e a tenebrosa trama de Plein Soleil é um dos pontos altos do filme, contraposição desprezada por Anthony Minghella em O Talentoso Ripley, um tanto sombrio e esmaecido pela empatia meia-bomba do elenco.
Fui precipitadamente injusto com a minissérie da Netflix, que maratonei até o último minuto, impressionado com a ambição da proposta, a densidade do roteiro, a mise-en-scène maneirista de Zaillian e com o chiaroscuro de Robert Elswit, que já me havia conquistado com o estilo Life-Look que imprimiu às imagens de Boa Noite e Boa Sorte, e agora me impressiona com sua inventiva releitura do tenebrismo de Caravaggio, a influência maior de Ripley, junto, é óbvio, com Hitchcock, de cuja sombra o personagem não consegue desgrudar. Foi com a grana que ganhou pela história de Pacto Sinistro que Highsmith visitou Positano pela primeira vez, onde conheceu o protótipo de seu mítico escroque.
A quem já viu a minissérie não preciso explicar por que lhe daria, aqui, se pudesse, o título de O Gato por Testemunha.
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