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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Tudo Verdade

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

Quando há pouco o 'Caderno 2' festejou seus 30 anos de existência, excelência e persistência, eu me dei conta de que estava emplacando duas décadas de 'Estadão'. Nunca fiquei tanto tempo num jornal. Debutei, aqui mesmo no 'Caderno 2', há exatos 20 anos, com um artigo sobre a fixação de Hollywood no Holocausto.  (A bem dizer, estou fazendo 50 anos de 'Estadão', pois na edição de 17 de setembro de 1966 de seu 'Suplemento Literário' publiquei um massudo panegírico do “Novo Cinema Italiano”. Menos um ensaio do que um balanço do que haviam feito Pasolini, Bertolucci, Rosi, Zurlini, Olmi, Maselli, Loy e outros menos votados. Reencontro no meio dessa turma um talento que muito me empolgou na época e acabou abduzido pela grotesca TV italiana: Ugo Gregoretti, diretor de Anjos Modernos e Omicron.) Voltemos a março de 1996. Dois documentários sobre o Holocausto haviam recentemente dividido os Oscars da categoria, outros curtas e longos estavam a caminho, assim como livros e até um memorial aos cuidados de Steven Spielberg – atualidade não faltava à minha pauta. Entre os projetos prometidos, o mais promissor (um documentário sobre os artistas e intelectuais europeus, judeus e gentios, exilados nos Estados Unidos, em bom número na Califórnia) ficou só na promessa. Seu produtor, Charles Roven, com um filme de nível ('Os 12 Macacos') em seu currículo, nem sequer o iniciou, bandeando-se para a produção de blockbusters com Batman & cia.  O tempo que em vão perdi à espera de um filme que adaptasse à tela o estudo de Anthony Heilbut, 'Exiled in Paradise', só seria em parte compensado com 'Canto dos Exilados', recente série de 10 programas produzida para o canal a cabo Arte 1 por Leonardo Dourado e Kristina Michahelles sobre os mais destacados artistas e intelectuais judeus (Zweig, Carpeaux, Rosenfeld, Koellreutter, Flusser, Rónai, etc.), que fugiram para o Brasil e nos ajudaram a civilizá-lo. Mas continuo esperançoso de que ainda irão recuperar em imagens tudo o que Thomas Mann, Huxley, Brecht, Stravinksy, Adorno e outros fizeram no exílio americano.  Hannah Arendt teve mais sorte. Já rendeu um docudrama e um documentário, 'Vita Activa – O Espírito de Hannah Arendt', de Ada Ushpiz, esta semana exibido na mostra 'É Tudo Verdade'. Esplêndida mostra, diga-se. Na qual, aliás, 'Canto dos Exilados', devidamente compactado, faria ótimo pendant com Imagens do Estado Novo (1937-1945), de Eduardo Escorel. Nem precisava compactar muito os depoimentos dos exilados, já que o painel histórico de Escorel, construído em cima de imagens de cineatualidades e filmes caseiros do período, dura em torno de 3 horas e 40 minutos.  Outros filmes de temática histórico-política foram exibidos na mostra, mas o do Estado Novo foi o único que pude ver. Hitchcock dizia, em tom de blague, que o melhor crítico de cinema é o nosso traseiro; quanto mais ele se agita durante uma exibição, “pior” o filme. As pernas também são um termômetro confiável; quanto menos vezes numa sessão as cruzamos e descruzamos, “melhor” o filme. Durante a maratona Estado Novo, só descruzei as pernas uma vez, no intervalo de 15 minutos que a divide em duas partes, tão hipnóticas as imagens agenciadas pelo diretor, montador e narrador Escorel, com habilidade, inteligência e sólido conhecimento histórico. Havia colaborado com ele nos três primeiros documentários sobre as revoluções da República (1930, 32, 35), e morri de pena e inveja por não ter podido participar deste quarto, sem dúvida, o melhor da série, até porque o de maior fartura iconográfica e o mais próximo de nós e tudo que vivemos desde a ditadura getulista e seus desdobramentos pós-45. A sensação que fica é de que assistimos a um documentário que bem poderia intitular-se Imagens do Brasil (1935-2016). Os paulistanos ainda podem apreciá-lo hoje (16), às 13h, no Cine Arte do Conjunto Nacional. A mostra deste ano foi predominantemente literária, com quatro inspirados retratos de poetas brasileiros (destaque para Manter a Linha da Cordilheira Sem o Desmaio da Planície, de Walter Carvalho, sobre Armando Freitas Filho, e Cacaso na Corda Bamba, de José Joaquim Salles e PH Souza, sobre os quais gostaria de remoer algumas observações com mais vagar e espaço) e pelo menos dois documentários em torno de mestres da prosa latino-americana, Gabriel García Márquez e Ricardo Piglia. São filmes que lidam com a força das palavras e da memória, mergulham em velhas anotações e vasculham diários, deixando-se interpenetrar pela política e suscitando ecos ou rimas curiosas entre si.  Walter Carvalho, por exemplo, diretor do documentário sobre Armando Freitas Filho, é personagem de Cacaso na Corda Bamba, por ter sido grande amigo e discípulo confesso de Antonio Carlos de Brito, o Cacaso, que, por sua vez, foi íntimo de Ana Cristina Cesar, protegée de Armando e, como Cacaso, morta prematuramente. Os cadernos de Armando, Cacaso e Piglia talvez tenham mais coisas em comum do que minha atenção captou. Uma certa morbidez também os aproxima: Cacaso morreu de enfarte aos 43 anos; Ana Cristina Cesar (homenageada da Flip deste ano) suicidou-se aos 31; Armando, embora mais hipocondríaco do que Woody Allen, vai muito bem, obrigado; Piglia sofre da mesma doença degenerativa que há seis anos matou o historiador Tony Judt: esclerose lateral amiotrófica. O diagnóstico saiu em setembro de 2013, com as filmagens de 327 Cuadernos já em andamento. Míticos cadernos, levados a capricho pelo escritor argentino desde os 16 anos e guardados em 40 caixas de papelão, é toda uma vida registrada a caneta-tinteiro e com o que lhe vinha à cabeça: ninharias do cotidiano, aflições e alegrias, sacadas, projetos, microanálises literárias. Que o diretor Andres Di Tella ilustra e enriquece com material de arquivo, filmes domésticos de famílias anônimas, memorabilia alheia que, indiretamente, ilumina a trajetória do (auto)biografado, quase sempre presente diante da câmera.  Li parte dos diários em forma de livro, então atribuídos a Emilio Renzi, seu indisfarçado alter ego, e entre as revelações não aproveitadas por Di Tella encontrei o registro de um show de Gato Barbieri no Blue Note, de Nova York, e a confissão de que Piglia pretendia fazer um documentário sobre o músico patrício, morto 15 dias atrás.  Encapsulada nos cuadernos, a história da Argentina da segunda metade do século passado: Perón, o golpe de 1966, a morte de Guevara, a volta de Perón, a ditadura militar. Complemento perfeito para o documentário de Escorel.

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