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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Velhos tempos

“Adoro a Argentina a despeito do argentino caricatural, demasiado soberbo e milongueiro, metido a europeu, sem ancestrais afros ou aborígines, o ‘ariano’ do Atlântico Sul”

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Sobretudo por causa de minha mãe, sempre senti um especial carinho pela Argentina, que a conquistou pela música. Mamãe sabia tudo sobre tango, mais até do que José Lino Grünewald, o maior expert em Gardel de meu círculo de amigos.

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Ela também teria vibrado com a acolhida e a tranquilizante promessa de apoio de Lula ao presidente Alberto Fernández, mais especificamente à Argentina, cada vez mais insegura de sua identidade: ser o pescoço do Terceiro Mundo ou o rabo do Primeiro? Acabei de pegar carona numa blague de Tomás Eloy Martínez.

Adoro a Argentina a despeito do argentino caricatural, demasiado soberbo e milongueiro, metido a europeu, sem ancestrais afros ou aborígines, o “ariano” do Atlântico Sul. Quando ainda éramos, ao olhar gringo, “o país do futuro”, os hermanos já desfrutavam de um presente fulgurante, que sucessivos “chorros, maquiavelicos y estafaos” lograram destruir. Discépolo não resumiu a história de seu país apenas, mas também a nossa e de todo um continente.

Fui bem menos à Argentina do que gostaria e deveria. Visitei-a pela primeira vez em 1968, num congresso de historietas, que é como lá denominam as histórias em quadrinhos. A segunda viagem, dois anos mais tarde, foi uma cortesia de Hollywood: a première latino-americana de A Filha de Ryan, precedida de um folclórico churrasco numa hacienda gaúcha como que saída de Os 4 Cavaleiros do Apocalipse, cujo ponto alto foi uma preguiçosa conversa vespertina com o diretor David Lean.

O obelisco de Buenos Aires. "Adoro a Argentina a despeito do argentino caricatural, demasiado soberbo e milongueiro, metido a europeu, sem ancestrais afros ou aborígines, o “ariano” do Atlântico Sul." Foto: Ministério de Tursimo da Argentina

A bonificação daquele passeio acabou sendo a descoberta, na casa noturna Michelangelo, antes de sua invasão por turistas, de um tangueiro sui generis chamado Astor Piazzolla, então desconhecido no Brasil, mas não por muito tempo.

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Ah, sim, por pouco, quiçá muito, casei com uma argentina. Por mais estranho que pareça, nunca a vi pessoalmente. Para ser franco, nem chegamos a namorar. Ali por volta dos 15 anos, aderi à moda de vários companheiros de colégio, me correspondendo com jovens de outros países, sintonizados conosco pela Casa do Estudante do Brasil. Aprendizado de línguas sem igual. Comecei com quatro garotas, em diferentes continentes; até em Tóquio arrumei uma amiga. A francesa durou o quanto aguentei as gozações dos colegas com o nome de sua cidade, Cholet. Fica no Loire e, pelas fotos, não fede nem cheira.

Ao cabo de um ano rifei todas, menos uma, Cristina González Acha, bela morena argentina de Santa Fé. Morava na Calle Urquiza, gostávamos dos mesmos livros e dos mesmos filmes. Antes que aquele relacionamento tomasse contornos mais sérios, deixei-a, lenta e covardemente, na orfandade epistolar.

Quase a procurei 20 anos depois, em outra passagem por Buenos Aires, mas, lembrei-me do melancólico conto de Anibal Machado, Viagem aos Seios de Duília, e desisti, a tempo, de recuperar o “viejo tiempo que nunca volverá”.

Opinião por Sérgio Augusto

É jornalista, escritor e autor de 'Esse Mundo é um Pandeiro', entre outros

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