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Coluna quinzenal do jornalista e crítico Sérgio Martins com histórias da música

Opinião|Alma torturada, artista inquieto, ídolo de Paul McCartney: Por dentro da história de Brian Wilson

Um retrato do principal compositor dos Beach Boys, diagnosticado com demência, para além das canções sobre praia, sol, garotas e surf e de hits como ‘God only knows’, com uma playtist especial

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Foto do author Sérgio Martins

Brian Wilson, vocalista e principal compositor dos Beach Boys, grupo que foi a cara da juventude americana do início dos anos 1960, é a definição perfeita do termo “alma torturada”. Desde cedo, foi atormentado por vozes que duvidavam de seu talento e diziam que ele tinha de se matar. Passou décadas à base de remédios até que, em maio passado, foi diagnosticado com demência e colocado sob cuidados dos filhos e empresários. Mas falar com um sujeito que tem fãs como Paul McCartney era sempre uma oportunidade de ouro, ainda que os resultados nunca foram menos que decepcionantes.

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Eu o entrevistei duas vezes.

Na primeira, meses antes de sua primeira e única vinda ao Brasil, em 2004, ele respondia a todas as perguntas com frases diretas, mas sem o mínimo de emoção.

Seis anos depois, na rodada de conversas para divulgar seu disco tributo ao compositor George Gershwin, o ex-Beach Boy se limitava a dizer: “Eu amo Gershwin, era o artista predileto de minha mãe.”

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É bem capaz que nos últimos anos nunca tenha dado bola para as recentes homenagens feitas a ele - por cantores e autores de alta patente do showbiz mundial – Paul McCartney, por exemplo, é fã declarado. No máximo, deve ter lançado um olhar desconfiado como fazia nas mais recentes performances dos Beach Boys, ou encarado o vazio, dando pistas de que o artista inquieto que um dia foi não existe mais.

Brian Wilson se apresentou no Tim Festival em 2004 Foto: Valeria Goncalvez/Estadão

A biografia de Brian Douglas Wilson e de sua criação maior, os Beach Boys, é composta de elementos fartos de pesquisa, tanto para críticos de música quanto tabloides sensacionalistas: filho maltratado pelo pai, artista torturado, muitas drogas e a eterna discussão do quanto vale a pena sacrificar crenças artísticas em troca de mais alguns minutos de fama. É também tão multifacetada que pode ser contada das mais diferentes maneiras.

Duas delas, aliás, estão à disposição nas plataformas de streaming de sua preferência. The Beach Boys (Estados Unidos, 2024; em cartaz no canal Disney) é a visão do cineasta Frank Marshall e do documentarista Thom Zimny sobre a ascensão do grupo que Brian criou ao lado dos irmãos, Dennis e Carl, do primo Mike Love e do amigo Al Jardine – que temporariamente foi substituído por David Marks.

Long Promised Road (Estados Unidos, 2021; disponível para aluguel na Amazon Prime, Apple e Google Play), de Brent Wilson (sem parentesco), é um passeio do cantor com o jornalista Jason Fine pelos locais onde morou em Los Angeles. São produções complementares. Se a história dos Beach Boys nos mostra como a música evoluiu do iê-iê-iê para se tornar uma obra de gente grande, a perambulação de Brian é a busca de uma alma dolorida por um tempo em que ele acha que foi feliz.

Em The Beach Boys, o acadêmico americano Josh Kun revela que tinha preconceito contra o grupo por causa da visão – equivocada, diga-se – de que eles se resumiam a um punhado de canções a respeito de praia, sol, garotas e surf. Embora limitado, é um veredito comum que se faz às produções dos iniciais Beach Boys (inclusive do redator que vos escreve, que só descobriu que eles iam além das canções praieiras ao comprar compilação dupla Made in U.S.A.).

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O quinteto, na verdade, unia as vocalizações de grupos como Four Freshmen com a energia do rock, que estava vivendo no auge da sua popularidade. Sucessos como Surfin in the U.S.A. e I Get Around eram retrato do otimismo americano daquele período, mas poderiam também ser encarados como uma espécie de escapismo.

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Brian, Dennis e Carl sofriam nas mãos do pai, Murry, que se dava ao luxo de ter pelo menos três tipos de madeira para surrar os filhos. E quando o grupo começou a alçar voo, ele assumiu as função de empresário com a mesma mão pesada que cuidou da educação das crianças, interferindo nas produções das canções e despedindo o guitarrista David Marks quando este deu os primeiros sinais de rebeldia.

O documentário de Marshall e Zimny, embora ignore as mortes de Dennis e Carl e a turnê de reunião do grupo, no início dos anos 2010, tem o mérito de reconstruir a história dos Beach Boys por meio de um primoroso trabalho de pesquisa, com cenas raras em vídeo da família, e uma mostra da competitividade que sempre moveu o principal compositor do grupo.

Brian Wilson muitas vezes se sentiu incomodado com a crescente popularidade dos Beatles, bem como seu amadurecimento nos estúdios de gravação. A melhor resposta que ele poderia ter dado ao quarteto inglês foi Pet Sounds, de 1966, um disco no qual o grupo americano adentrou na idade adulta. Saíram o surf, os carrões e a prancha para entrada de temas como casamento, solidão e inadequação social. Inspirado pelas produções dos Beatles e pelas orquestrações do produtor Phil Spector, Brian criou um punhado de canções pop de arranjos complexos, que ganharam elogios do maestro americano Leonard Bernstein (1918-1990).

Pet Sounds consagrou a figura de Brian Wilson como um dos grandes compositores do seu período, mas também lhe rendeu a pecha de gênio atormentado –que, de fato, o era. Por outro lado, reduziu a participação dos outros integrantes a meros coadjuvantes. Embora o talento de Brian fosse inegável, foram os quatro beach boys restantes (e mais o tecladista e vocalista Bruce Johnston, que assumiu o lugar de Brian durante as turnês) que seguraram as pontas quando este deu os primeiros sinais dos problemas mentais que o acompanham até hoje. Principalmente Love, cujos dotes vocais são cruelmente subestimados.

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The Beach Boys realça os méritos do vocalista. The Long Promised Road, o documentário posterior (embora tivesse sido rodado antes) traz passeios às vezes dolorosos do cantor e compositor com o jornalista Jason Fine. Avesso a entrevistas, Brian só responde às perguntas de seu interlocutor quando está dirigindo ou comendo algo nos dinners que a dupla encontra pelo caminho. E mesmo quando fala, adota um tom monossilábico, que muitas vezes se assemelha ao de uma criança que não está a fim de conversa. O vácuo de ideias é preenchido por depoimentos de fãs como Elton John, Bruce Springsteen e do produtor Don Was, que analisa o dom de Brian Wilson como arranjador e produtor.

O que é verdade e o que é ficção na biografia de Brian Wilson

O cérebro dos Beach Boys tem uma visão particular da realidade. Dependendo do seu estado, fatos determinantes de sua biografia podem ou não ter acontecido. Por exemplo, ele teria ficado surdo do ouvido direito por causa de um espancamento que sofreu do pai, Murry. Na entrevista que fiz com ele, em 2004, Brian negou essa informação – que depois voltaria com força em sua cinebiografia, Love & Mercy, na qual foi interpretado pelos atores Paul Dano e John Cusack.

Ele deu God Only Knows, canção que Paul McCartney disse ser “a maior balada de todos os tempos” para o irmão, Carl, cantar. “Ele era invejoso, nunca nos demos muito bem”, resmungou Brian. O momento alto foi quando comentei do amor do ex-Beatle por God Only Knows. “Paul me falou que é a canção predileta dele. Eu adoraria ter composto The Long and Winding Road”', confessou.

Numa das tentativas de cura do compositor, ele caiu nas graças do psiquiatra Eugene Landy, que cobrou um preço altíssimo para, digamos, “colocá-lo na linha”: ele o afastou dos familiares e se interferia no dia a dia do cantor, a ponto de intervir nas entrevistas e se declarar parceiro do paciente – tinha direito a porcentagem sobre os hinos dos Beach Boy. Os dois períodos de tratamento de Brian (de 1975 a 1976 e de 1982 a 1991) teriam custado milhões ao cantor.

Das filmagens para cá, a saúde do principal compositor dos Beach Boys deu claros sinais de deterioração. A morte de sua mulher, Melinda, em janeiro deste ano, só acelerou esse processo. Era ela quem coordenava o dia a dia do marido, inclusive mandando mensagens de incentivo no teleprompter no qual ele lia as letras das próprias criações (quem o assistiu de mais de perto em 2004, quando veio ao Brasil, jura ter lido frases como “Você consegue, Brian!’ junto aos versos de cada hit).

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Prisioneiro do mundo que construiu para si, Brian mal pôde aproveitar as celebrações que também foram feitas no lançamento da série da Disney. Resta aos fãs e aos estudiosos, então, a missão de valorizar o seu talento. E reafirmar o que ele cantou em 1966: “God only knows what we would be without you”.

Playlist: Beach Boys, Brian Wilson, artistas que o influenciaram e foram influenciados por ele

Opinião por Sérgio Martins

Jornalista e crítico musical

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