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Coluna quinzenal do jornalista e crítico Sérgio Martins com histórias da música

Opinião | O adeus de Ozzy dos palcos soa como uma despedida digna de uma era criativa do universo do rock

Ídolos dos anos 60, 70 e 80 estão chegando ao final de suas trajetórias e não consigo ver nomes que se equiparem em talento e criatividade. O importante é que esses adeus estejam sendo dados em cima do palco, onde a música e o amor do artista pela profissão superam a cobrança do tempo

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Foto do author Sérgio Martins

“Ozzy, tudo bem? Aqui é Sérgio Martins, do Brasil.”

“Sim, tudo bem. Brasil? Tenho uma coisa para te contar: o Black Sabbath toca aí no final do ano. Mas é segredo.”

“Mas, Ozzy, o seu escritório marcou nossa entrevista justamente para falar dessas apresentações!”

“Sério?”

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“Sim, sério.”

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“Bom, nesse caso, venham nos assistir!”

Essa conversa surreal, que aconteceu no início de 2016, me veio à mente logo após assistir à cerimônia de introdução de Ozzy Osbourne no Rock and Roll Hall of Fame, no último dia 19 de outubro (e já que estamos em tempos de Halloween, lembremos de um personagem assumidamente assustador). Aquele que um dia carregou o título de “Senhor das Trevas” ouviu cada elogio do ator e dublê de roqueiro Jack Black sentado num trono estilizado e mostrou os efeitos de uma vida de excessos e do mal de Parkinson, cujo diagnóstico recebeu em fevereiro de 2019. Um dos sintomas mais visíveis era o da fala. Se antigamente, era quase impossível entender o que ele dizia por causa do sotaque de Birmingham (chamado de “brummie” pelos locais), hoje ele murmura e lamenta algo similar à voz humana.

O estado atual de saúde de Ozzy – que, temem os fãs, seja permanente – impede que o vocalista pise de novo num palco. A última vez que o fez foi no dia 12 de setembro de 2022, no intervalo de uma partida de futebol americano em Inglewood, cidade do estado da Califórnia. Mas Sharon Osbourne, mulher e empresária do cantor, ainda sonha com uma performance final em Birmingham, cidade natal de Ozzy e do Black Sabbath, grupo que ele criou ao lado do guitarrista Tony Iommi, do baixista Geezer Butler e do baterista Bill Ward e que criou um gênero musical chamado heavy metal.

Jack Black, à esquerda, com Ozzy Osbourne durante sua homenagem no Hall da Fama do Rock & Roll, no dia 19 de outubro Foto: Chris Pizzello/AP

Torço para que as performances finais virem realidade, nem que seja feito com ele o mesmo que fizeram com El Cid – que, de acordo com a lenda, foi amarrado morto ao seu cavalo a fim de aterrorizar o exército mouro, lá nos idos do século XI. Ozzy mal consegue ficar de pé ou cantar? Tudo bem: que o público, em gratidão, faça isso por ele. Afinal, que fã do pai do heavy metal que nunca gritou os clássicos do seu repertório –canções como Crazy Train, No More Tears ou I Don`t Know? Ou imitou o famoso sinal em “v” que ele fazia com os dedos nos tempos de Black Sabbath ou carreira solo?

O adeus de Ozzy dos palcos, para mim, soa como uma despedida digna de uma era criativa do universo do rock. Os nossos ídolos dos anos 1960, 1970 e 1980 estão chegando ao final de suas trajetórias e não consigo ver – podem chamar de saudosista, eu não ligo – nomes que se equiparem em talento e criatividade. O importante é que esses adeus estejam sendo dados em cima do palco, onde a categoria das composições e o amor do artista por sua profissão superam a inevitável cobrança do tempo.

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Eu ainda me lembro, por exemplo, da emoção que era presenciar Elza Soares (1930-2022) superar as dores do corpo e da alma e dar tudo de si na turnê de A Mulher do Fim do Mundo; ou as mais recentes apresentações de Eric Clapton e Paul McCartney no País, onde as eventuais falhas na voz foram “perdoadas” por conta da entrega desses senhores no palco. E o adolescente que se encantou com o heavy metal no início dos anos 1980 prepara o coração para se despedir em breve de Iron Maiden, Scorpions e Judas Priest, grupos dos meus tempos de camisa preta e cabelos longos.

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De volta ao nosso tema, Black Sabbath e Ozzy Osbourne são amor antigo. Desde os tempos em que o Som Pop, pioneiro programa de vídeos da TV Cultura, exibiu o clipe de Hard Road, canção do disco Never Say Die, de 1978. O acesso à informação era escasso e minha única fonte daquele período era uma revista pôster escrita por Paulo Ricardo, que tempos depois se tornaria líder do grupo RPM. Ali, conheci a história do grupo, que Ozzy tinha dois discos solos – inéditos no Brasil – e devorou a cabeça de um morcego pensando que era de borracha (tempos depois, descobri que antes disso ele tinha feito o mesmo com duas pombas – e sabia que elas não eram de borracha).

O primeiro disco do Black Sabbath que ostentei em minha coleção foi Sabotage, de 1975. Eu troquei com uma fã de Gal Costa que implorou pelo disco que tinha Chuva de Prata – sim, pode soar uma heresia nos dias de hoje, mas era raro achar discos do Black Sabbath nas lojas. Sabotage é até hoje o meu álbum preferido do quarteto inglês.

As conversas com Ozzy Osbourne (três, ao todo) vieram muito tempo depois de assisti-lo em diversos festivais e comprar boa parte de sua discografia. E, claro, me assustar com as histórias das loucuras cometidas pelo excesso de drogas e álcool – que culminaram com uma tentativa de assassinato da própria mulher, Sharon, em 1989. Sim, todas foram pontuadas por piadas e gafes como a que cometeu no primeiro parágrafo.

Mas uma, em particular, me deixou comovido.

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Eu perguntei o porquê do último disco do Black Sabbath, 13 (o grupo voltou especialmente para esse álbum e sua turnê de despedida) ser dedicado a Jack Osbourne, filho do cantor. “Sabe, Jack foi diagnosticado com esclerose múltipla. Eu admiro a coragem dele. Por vezes, apelei para o álcool e para as drogas por não suportar alguns problemas que aconteciam comigo. Mas ele se mantém firme”, confessou. Foi uma das poucas vezes em que o Senhor das Trevas desceu do personagem para se revelar um pai amoroso.

Ozzy Osbourne e Black Sabbath, como se sabe, foram saco de pancadas da crítica especializada por muito tempo. Robert Christgau, decano da revista Rolling Stone e do jornal Village Voice, escreveu o seguinte insulto sobre o disco de estreia do quarteto: “Estou preocupado que uma desgraça dessas pudesse acontecer desde a primeira vez que vi uma coluna de numerologia em um jornal clandestino.”

Um jornalista da Rolling Stone brincou com o título de No Rest For the Wicked (algo como Sem Descanso para o Ímpios), que Ozzy lançou em 1989, e decretou que ele deveria se chamar “Sem Descanso para os meus Ouvidos”). De fato, os dois são gostos adquiridos.

O Sabbath criou a estética do que hoje se dá o nome de heavy metal: uma sonoridade cavernosa, lúgubre, com temas macabros e a voz nasal de Ozzy, que traziam o tom certo de medo e tormento para as letras de Geezer Butler. Na carreira solo, esses assuntos foram reforçados por guitarristas rápidos e habilidosos, ideais para os anos 1980 – procure os dois primeiros discos, que trazem o virtuose Randy Rhoads.

A homenagem do Rock and Roll Hall of Fame para Ozzy, embora justa, chega com décadas de atraso por conta do esnobismo do colégio eleitoral da entidade americana. Mas é bom ver que o cantor inglês conseguiu viver a tempo de finalmente ter seu nome eternizado entre os grandes. E me lembro agora de outra preciosidade que me foi dita por Ozzy.

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“Eu já sei como vou morrer!”

“Como?”

“Meu amigo, eu tenho tanta química no meu corpo que um dia uma pomba irá defecar na minha cabeça e irei derreter no asfalto ah ah ah!” Por favor, alguém afaste as pombas de Ozzy Osbourne: ele merece uma saída de cena à altura de sua importância para o mundo do rock.

Opinião por Sérgio Martins

Jornalista e crítico musical

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