Uma série sobre a vida e carreira do lutador Anderson Silva deve ter muita briga e porrada, certo? Não necessariamente. Esse é o exemplo de Anderson Spider Silva, do Paramount+, que mostra, sim, o tatame e o octógono, mas mira principalmente os bastidores de um dos maiores vencedores do UFC e promete não esconder nada. “Eu chorei quase toda a série”, diz Anderson em entrevista ao Estadão.
Essa opção pelo lado de fora do palco faz todo sentido. “A luta você entra no YouTube e vê”, ilustra a atriz Tatiana Tiburcio, que interpreta Tia Edith na série. A mulher que criou Anderson Silva. E a mulher, que, por que não, o transformou em quem ele é.
Tatiana explica que a videobiografia, dividida em cinco episódios e já disponível no streaming desde o último dia 16, foi contada a partir de uma perspectiva feminina de origens africanas. O que para ela faz toda diferença.
A trajetória do Aranha é vista através dos olhos da tia, da mulher - Dayane - e da mãe - Vera. As três forjaram o caráter, a personalidade, e aglutinam a família do lutador.
“Ele não é único. Ele só é o que é porque tem um coletivo por trás dele. O indivíduo só existe na coletividade, e o coletivo só existe por conta da individualidade”,
resume Tatiana.
Mesmo com um elenco predominantemente masculino - muito predominantemente, inclusive -, são as relações com essas mulheres que moldam os caminhos da história. E ela é mostrada mais como um complexo e divertido drama familiar do que como uma produção de ação.
Combates diferentes
É interessante notar até que Anderson nem sempre luta para valer em cena. Essa não é uma série de reconstituição, inclusive porque as disputas já foram reprisadas à exaustão.
A inteligente escolha do time de roteiristas pinça os momentos mais importantes dos embates. Às vezes eles estarão no tablado, sim. Em cenas bem dirigidas, que permitam não só outra perspectiva para o evento, como também de fato ver os golpes. Mas, na maior parte das vezes, não.
Até porque, seria um desperdício não ver William Nascimento no octógono. O ator incorpora Anderson com profundidade e entrega uma atuação consistente, tanto nas descargas de ira, quanto nas performances mais contidas e de emoções complexas.
Mas ele brilha também no combate. “O cara é muito melhor que eu”, brinca o próprio Anderson quando perguntado se ensinou William a lutar. “Teve a ajudinha dele, tinha que ter, né?”, arremata o ator.
Para Anderson, que viveu sob os holofotes das arenas, essa foi uma forma diferente de exposição. Mas ele diz que foi muito emocionante e gratificante ver outra pessoa o interpretar. “É um processo que você tem que digerir. Você vê a tua vida passando ali na tua frente e te remete a coisas do passado. Chorei muito”, afirma.
Histórias para inspirar
Parte fundamental deste passado - e presente - é a mulher dele, Dayane Silva. Os dois se conheceram e começaram a namorar ainda adolescentes, mas só se casaram em 2017 - depois até do nascimento de todos os cinco filhos do casal.
Todo o relacionamento é retratado na tela e mostrado como de uma profunda parceria, até Anderson ser confrontado a escolher o que priorizar. Dayane é vivida por Larissa Nunes (Coisa Mais Linda), que conta ter havido muita sinergia com William no set.
Para ela, que vem de personagens de época, o perfil contemporâneo e mais discreto de Dayane foi muito bem-vindo. “Ela é muito presente na história do Anderson. E tem os sonhos, a força, a independência dela, que é essencial para estar ao lado de um homem que está conquistando seus sonhos”, descreve.
“Acho que ela tem essa força de inspirar. E, além de tudo isso, [representa também] tantas outras histórias de mulheres pretas que puderam traçar um caminho de superação”, diz Larissa. Que comemora a personagem moderna por poder “brincar com o visual” e explorar uma “expressividade diferente, importante e potente”.
‘A gente não escondeu nada’
O campeão de MMA é produtor executivo da série e sustenta que a ideia do programa já vinha sendo discutida há anos. O propósito é ser um produto inspirador, mas sendo baseada na história real dele há episódios tensos que não podem desaparecer.
Outras biografias similares, com envolvimento dos retratados, têm tendências de suavizar o golpe. Mas Anderson garante que isso não aconteceu. “A gente não escondeu nada, não”, reforça. “Eu briguei muito para que colocasse outras coisas que eram fundamentais para as pessoas entenderem realmente quem eu sou”, conta.
Mas ao ser instado a dar exemplos, foi genérico. “Tem momentos que a gente queria ter colocado que eu sou eu mesmo, despirocando completamente. A gente colocou o que deu tempo de colocar. Que achou que teria relevância, tocaria e iria inspirar as pessoas”, destaca.
“É uma série de seres humanos, que são falhos. Que estão ali com as suas frustrações, com os seus sonhos, com seus medos. É uma série que traz a verdade de quem eu sou”,
revela Anderson.
O que a série realmente é, além de tudo, é um atestado de representatividade. Anderson cresceu em Curitiba, apesar de ter nascido em São Paulo. E, embora a cidade paranaense seja conhecida pela predominância de colonização e referências européias e brancas, dados do IBGE mostram que ela é a capital mais negra do Sul.
Representatividade importa
Assim é também a família do lutador, o que foi uma oportunidade para Tatiana interpretar uma figura materna mais comum, fora da narrativa da tragédia. “O que acontece aqui em Spider é um lugar onde a gente gostaria de estar”, reflete.
“Poder falar de nós sendo nós, com todas as nossas referências, identidade, tudo aquilo que nos faz únicos enquanto sujeitos pretos. Mas numa perspectiva que nos permite um olhar mais ameno, um trabalhar o afeto, o amor, o companheirismo, a cumplicidade, que é muito forte entre essas mulheres”, explica Tatiana.
Ela se emociona ao lembrar da atriz Ruth de Souza. A veterana, que morreu em 2019, é uma referências para artistas negros, especialmente na televisão. “Ela não teve a oportunidade de ver isso. E ela falava muito dessa falta. ‘Como é triste ver que somos poucos’. E ali sentada naquela cena, da mesa, com toda aquela família reunida, com todos aqueles jovens atores, e eu e [Seu] Jorge encabeçando essa mesa, olhando aquilo tudo, a gente fala: ‘Estamos colhendo. Ainda pouco, mas colhendo aquilo que plantaram para nós”, enfatiza.
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