Batman é e sempre foi um herói das sombras. O traje, o olho sombreado, a Batcaverna, Gotham poluída e violenta. Não é à toa que, nos cinemas, a fotografia dos filmes está cada vez mais escura, refletindo esse clima geral do herói da DC Comics. Agora, porém, as histórias do Batman chegam ao máximo da escuridão com a audiossérie Batman Despertar, produção original do Spotify e que estreia na plataforma nesta terça-feira, 3. Lançada com dois episódios e, depois, com capítulos inéditos toda semana, a série coloca o ouvinte no meio de uma Gotham aterrorizada por conta dos crimes do serial killer O Ceifador. Mas Batman não aparece para salvar o dia. O motivo? Bruce Wayne não tem nenhuma memória de que um dia ele foi o Cavaleiro das Trevas. Barbara Gordon, enquanto isso, busca ajuda do segundo detetive mais inteligente da cidade: o Charada.
Quem comanda a adaptação brasileira dessa narrativa é Daniel Rezende, diretor de Turma da Mônica: Lições e Bingo: O Rei das Manhãs. É a primeira vez que ele sai do audiovisual para explorar esse espaço. “Era quase como dirigir vendado”, diz o cineasta, em entrevista exclusiva para o Estadão. “Eu sempre quero fazer trabalhos que não tenho a menor ideia de como fazer. Se eu tiver ideia, não tenho interesse. O resultado é filho do processo.”Rocco Pitanga dá voz a Bruce Wayne, Camila Pitanga interpreta Kell e Tainá Müller empresta sua voz a Barbara Gordon. “Trazer um Batman negro quebrando esse lugar estereotipado é um grande passo para inspirar positivamente a sociedade que reivindica esses espaços”, comenta Rocco. “Foi uma honra para mim poder interpretar esses papéis. Tive ajuda das minhas filhas para construir o personagem e minha irmã comigo. Tudo aqui foi novo para mim. É uma linha narrativa incrível, muito diferente.”Batman Despertar traz de volta esse gênero das histórias de ficção contadas em áudio, com atores reais interpretando os personagens e preocupação com a criação do ambiente – ou seja, vai além da leitura de um audiobook. É algo mais parecido com as radionovelas, que tiveram seus anos de ouro principalmente nas décadas de 1940 e 1950, com dramatizações e uma preocupação que o ouvinte consiga criar aquele cenário contado em sua imaginação. “Daniel trouxe o conhecimento dele ao tratar essa obra como original, com uma linguagem de adaptação com possibilidade de mudar e editar o texto, mas mantendo as informações. Enxergamos o trabalho como original”, garante Marina Santana, diretora de voz. “O Daniel trouxe esse caminho de liberdade e, ao mesmo tempo, de mantermos nos trilhos uma versão local desse projeto. Eu trouxe as ideias para funcionar no mundo do áudio.”
Rocco e Camila Pitanga não escondem a emoção ao falar sobre a experiência da gravação – que, apesar de não ter imagem, exigiu disposição do elenco. “Foi maravilhoso. Eu admiro muito a Camila e o processo dela para chegar aos personagens com muita humildade e experiência. Tê-la nesse trabalho nos deu uma oportunidade de troca muito boa, contracenar ouvindo a voz objetiva e concreta dela me ajudou”, comenta Rocco. “Eu me emocionei muito durante as gravações, Rocco personificou Batman e Bruce Wayne de maneira inexplicável. Existe sim uma relação amorosa e afetiva, mas é trabalho e estávamos muito concentrados, vocês não têm ideia de como é focar só na voz em uma interpretação”, observa Camila. Será que tem espaço para mais? Rezende vai direto ao ponto. “Alô, Spotify? Alô, DC?”, brinca o diretor. “É um formato totalmente novo. Isso é muito legal, já que há possibilidades para muitos universos, não só do super-herói. (A audiossérie) pode ajudar a popularizá-lo. Você fala que é sobre o Batman, as pessoas acham que são duas pessoas conversando. Não é. Tem narrador? Não. É a dificuldade de contar para as pessoas o que é. As pessoas precisam descobrir essa experiência nova para consumir uma história do Batman.”.
Os primeiros minutos da experiência são estranhos. Não é podcast, não é audiobook. Há um cuidado evidente na ambientação do universo sonoro de Gotham City, enquanto vamos nos ambientando com os personagens e a situação. É um processo de entender e se acostumar. Mas uma vez que isso acontece, as coisas começam a fluir com naturalidade. Essa radionovela contemporânea do século 21, com um personagem tão marcante, é um sopro de frescor em um mundo em que tudo é estímulo visual, correria e conteúdo para acabar no segundo seguinte. Tudo bem que o Batman é um personagem exageradamente adaptado, mas dá um gostinho bom ouvi-lo interpretado por um brasileiro.
Afinal, sem visual, apenas com o som, podemos dizer que temos nosso Batman brasileiro. Ele é negro, com uma voz profunda e convincente, e um talento que já tinha sido visto em som e visual com o drama O Novelo, por exemplo. Não importa que a história não seja original do Brasil. Sem imagem, a adaptação toma conta do imaginário do espectador.Batman Despertar, assim, é uma experiência nova e com possibilidades. Fica a torcida, ainda, para que criativos brasileiros tenham a oportunidade de contar suas próprias histórias de personagens marcantes. Ainda que hoje soe um pouco estranho, essa radionovela moderna, de super-heróis, pode ser um novo espaço para exercitar a imaginação.
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