O ser humano nasce bom, mas a falta de oportunidades o corrompe. Na série Cangaço Novo, disponível no Prime Video, três irmãos nascem num núcleo familiar amoroso, porém desprovido de dinheiro e estrutura. Eles sofrem uma série de violências que insistem em atormentá-los na fase adulta.
Muitos anos depois, Ubaldo Vaqueiro cresce em São Paulo, trabalhando no exército, e depois, como bancário. Afastado de ambas as funções, se vê sem dinheiro, indagando como custear o tratamento hospitalar do pai de criação. As irmãs Dinorah e Dilvânia permaneceram na fictícia Cratará, no Ceará. Jamais saem do sertão árido.
As misérias sudestina e nordestina se encontram no descaso das autoridades, na ausência de um Estado forte. Precisando sobreviver, os protagonistas assaltam bancos — a princípio, por desespero, e depois, por se perceberem talentosos numa criminalidade profissionalizada.
Breaking Bad vem à mente. A ideia de cidadãos transformados em gângsters para custear remédios e médicos remete a Walter White, a quem se devem algumas frases de efeito: “Você vai saber meu nome” e “Eu sou Ubaldo Vaqueiro” lembram o “Say my name” norte-americano.
No entanto, as referências mais próximas da nossa cultura provêm de dois gigantes do cinema brasileiro: Cidade de Deus e Tropa de Elite. Estes projetos foram definidores da noção de blockbuster nacional, aplicando os códigos de ação às fissuras sociais — de maneira mais ou menos crítica, a gosto do espectador.
Cangaço Novo possui amplitude e qualidade suficientes para se equiparar as dois, porém, com uma diferença essencial: o ponto de vista. Tropa de Elite era narrado pela perspectiva dos justiceiros que combatiam traficantes; Cidade de Deus privilegiava os garotos da favela sem conexão com ilegalidades. Abordavam criminosos em terceira pessoa, de modo distante, fetichizado.
Nem mocinho nem bandido
Agora, a perspectiva pertence aos supostos ‘malfeitores’ - a uma parcela deles, pelo menos. O roteiro elimina maniqueísmos: não há bandidos nem mocinhos claros. Os cangaceiros contam com traidores e estupradores no bando. Ubaldo e Dinorah lutam contra adversários ainda mais perversos: os políticos da região, aplicando golpes sujos para dominar as terras pobres de Cratará.
Logo, separa-se a violência do opressor e a reação do oprimido, ou o banditismo institucionalizado e o banditismo de resistência. Quanto mais regras morais são aplicadas aos assaltantes, mais se aproximam da política eleitoral, na qual acabam, organicamente, infiltrados. “Tudo é política”, sugere o título de um capítulo, resumindo bem a narrativa inteira.
O resultado impressiona. Os oitos episódios demonstram ritmo impecável, com trabalho muito eficaz de roteiro e de direção (dividida entre Aly Muritiba e Fábio Mendonça). Alice Carvalho se revela uma força da natureza, atingindo momentos de grandeza no quinto episódio.
Allan Souza Lima confirma o talento sugerido em papéis anteriores, enquanto a galeria de coadjuvantes, composta por Thainá Duarte, Marcélia Cartaxo, Hermila Guedes, Ênio Cavalcante e Rodrigo Garcia, entre outros, desperta orgulho pela homogeneidade e o altíssimo nível cênico.
A trama de ação traduz dilemas muito brasileiros: corrupção policial e política, machismo e estupros, coronéis tirânicos e nepotistas. O candidato conservador sofre um atentado durante a campanha, retornando com a imagem fortalecida, proferindo palavras bíblicas enquanto empunha um revólver. Lembra alguém?
Talvez por isso, as poucas ressalvas escutadas até agora se encontrem no teor violento e nos palavrões. É curiosa a nossa tolerância a programas igualmente agressivos de origem norte-americana. Mas quando o referencial dialoga perigosamente com nossa realidade, passa a incomodar.
Ora, Cangaço Novo busca o senso crítico do espectador. Somos testados na adesão aos protagonistas: deveríamos apoiá-los, mesmo quando desempenham atos reprováveis? Os crimes cometidos se justificam, por serem vítimas de ilegalidades ainda maiores? É possível efetuar uma revolução sem violência?
Um gosto pelos clássicos
A escolha do sertão enquanto palco das contradições brasileiras bebe na fonte de clássicos como Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Cangaceiro. Ela também se comunica com ótimos filmes brasileiros recentes: Sertânia, Currais, A Luneta do Tempo.
Portanto, o excelente resultado constitui e não constitui uma exceção. Ele reúne talentos que já comprovavam o domínio de suas funções há anos — Muritiba na direção, Azul Serra na fotografia, Thales Junqueira na direção de arte, etc.
No entanto, é visível o impacto de uma grande produção. As perseguições, tiroteios, incêndios e assaltos refletem o orçamento confortável. Festeja-se um lançamento do nível de Cangaço Novo, ainda que constitua, a priori, propriedade intelectual estrangeira. São os norte-americanos que aprovam o conteúdo e determinam sua eventual renovação.
Imagine a capacidade do nosso audiovisual caso uma estrutura semelhante estivesse à disposição dos talentos confirmados e crescentes. Faríamos muito mais Cangaços Novos, Tropas de Elite, Cidade de Deus, Central do Brasil.
A produção nacional nunca careceu de habilidade nem de iniciativa, apenas de recursos e possibilidade de chegar ao público. Há centenas de Alys, Fábios, Alices, Allans, Marcélias, Hermilas, Ênios, Rodrigos e Thainás esperando pela oportunidade de mostrar conteúdos de mesma qualidade. Sorte a nossa.
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