‘Cem Anos de Solidão’ finalmente chega às telas: ‘Somos capazes de histórias belas’

Primeira parte da série baseada no romance de Gabriel García Márquez chega à Netflix nesta quarta, 11

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Mesmo fascinado por cinema, Gabriel García Márquez não estava muito disposto a ver nas telas sua obra maior, Cem Anos de Solidão. Até dá para entender: seu Amor nos Tempos do Cólera virou um filme meia-boca dirigido por Mike Newell e estrelado por Javier Bardem, falado em inglês. Faltava, como se diz por aí, o molho: o calor e a naturalidade com que os latino-americanos encaram coisas que não podem ser explicadas racionalmente.

Gabo, como era conhecido, até aceitaria uma transposição de Cem Anos de Solidão para a tela, desde que com a duração correta e em espanhol. Alguns anos depois de sua morte em 2014, a Netflix ofereceu à família do escritor uma série falada em espanhol e rodada na Colômbia. Depois de anos de pesquisa, de pré-produção e filmagem, a primeira parte, com oito capítulos, estreia nesta quarta-feira, 11.

Marleyda Soto interpreta Úrsula Iguarán em 'Cem Anos de Solidão' Foto: Mauro González/Netflix/Divulgação

O argentino Alex García López (com experiência em séries como Demolidor, The Witcher e Star Wars: The Acolyte), que divide a direção com a colombiana Laura Mora, tem plena noção da responsabilidade de adaptar um dos maiores livros da literatura latino-americana e mundial. “O medo me manteve acordado nos últimos quatro anos, mas a partir de amanhã quero voltar a dormir”, disse, em tom de brincadeira, em entrevista ao Estadão. “É tão importante fazer essa obra na Colômbia, na América Latina, com equipe majoritariamente colombiana. A Colômbia pode mostrar ao mundo que vai além das histórias de narcotraficantes. A América Latina não são só imigrantes, ditaduras e pobreza. Somos capazes de contar histórias poéticas, belas, grandes.”

Pesquisa extensa

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García López sabia que cada leitor tem uma imagem de José Arcadio Buendía e de Úrsula, o casal de primos que foge de sua cidade e do nariz torcido da família para fundar o povoado de Macondo no meio do nada. Na série, eles ganham o rosto de Marco Antonio González e Susana Morales na juventude, e de Diego Vásquez e Marleyda Soto na maturidade.

Nos primeiros oito episódios, eles criam seus filhos, veem a chegada de elementos externos como o alquimista Melquiades (Moreno Borja), presenciam a divisão da cidade pela política, o que leva à guerra. Há acontecimentos grandes e pequenos, amores proibidos, noivados rompidos, ciúmes entre irmãos e mistérios tratados como fatos do cotidiano.

Por causa do amor pelo livro, tanto o diretor quanto os produtores sabiam que precisavam pesquisar muito, mesmo que Macondo fosse uma criação de García Márquez. Eles foram à cidade natal do escritor, Aracataca, e às regiões onde aconteceram fatos históricos importantes retratados no livro, que se passa de meados do século 19 a meados do século 20.

Marleyda Soto Rios como Úrsula Iguarán e Diego Vásquez como José Arcadio Buendía na adaptação de 'Cem Anos de Solidão' da Netflix Foto: Netflix/Divulgação

Sendo argentino, o diretor também quis absorver a cultura oral e a convivência do povo com elementos mágicos e sobrenaturais que renderam à literatura de García Márquez e tantos outros escritores latino-americanos a discutida classificação de realismo mágico – alguns reclamam de uma exotização de um realismo que simplesmente espelha a cultura da região.

As equipes de figurinos e de direção de arte foram atrás de artesãos e de objetos originais da época. Na cidade de Alvarado, na província de Tolima, foram construídas quatro versões de Macondo, da mais primitiva até a cidade próspera que se tornou. A Casa Buendía foi erguida dentro de uma enorme tenda, para melhor controle técnico, de maneira a permitir ampliações e adições, conforme as condições da família melhoravam. A cozinha funcionava normalmente. As plantas eram de verdade.

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“Quando entrei na cidade pela primeira vez, a história já estava adiantada”, disse Diego Vásquez, que faz José Arcadio em sua fase madura. “Mas foi uma experiência muito bela estar imerso nesse espaço criado para contar a história desse lugar sonhado pelo personagem para se redimir de um pecado original e começar uma nova vida com um conceito idealista e sonhador, quase infantil.”

A criação da mágica

No universo de Cem Anos de Solidão, acontecem coisas inexplicáveis, como um saco de ossos que sacode sozinho, um rio de sangue que avisa de uma morte inesperada, pessoas que levitam. Mas nada disso é motivo de alarme. Tudo faz parte do cotidiano.

Outras adaptações dos livros classificados como “realismo mágico” – para os latino-americanos, apenas um realismo no estilo “não creio em bruxas, mas que elas existem, existem” – costumavam fazer um ‘auê’ desnecessário nesses momentos.

Aqui, todo o cuidado é para que isso não aconteça. “Mesmo em meus trabalhos de fantasia, eu gosto de fazer o máximo possível na frente da câmera”, explicou Alex García López. “Se há um monstro, coloco um ator vestido de monstro. Aqui, desde cedo decidimos dar ao relevo mágico uma execução muito cotidiana, pé no chão, simples, que às vezes quase não se nota.” Um tapete que sai voando não é tratado como um evento nem pela série nem pelos personagens. Quando uma chuva de flores cobre a cidade, a produção despejou uma chuva de flores naturais e artificiais mesmo, sem efeitos digitais.

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Para a atriz Marleyda Soto, que está em algumas das cenas fantásticas mais emblemáticas, interpretá-las foi como se trasladar para o universo feminino da sua própria família. “A produção fez o possível para que algo tão nosso, tão cultural, das nossas cosmogonias, tomasse vida”, disse ao Estadão. “Essa capacidade de ver além é um instinto que me parece muito feminino e nosso. Aquela coisa de dizer que se aparece uma borboleta é porque alguém vai morrer.”

Uma história cíclica

Cem Anos de Solidão conta a história desses personagens, dessa família e dessa cidade fictícia, mas também de um país e de toda a América Latina. “O ciclo se repete, nos esquecemos do passado e tudo começa novamente”, disse Diego Vásquez.

Para Alex García López, a chegada dos estrangeiros representa a influência externa sobre a nossa região. “Sempre sofremos com ela, seja do Banco Mundial, da Europa, da China”, disse. “Também vemos em Macondo a corrupção que obviamente é tão presente aqui.” Mas ele acha que o alcance vai além: “A obra também fala de uma guerra entre ideologias, que está acontecendo não só aqui, mas nos Estados Unidos, no Reino Unido, na França. Então essa história escrita há 50 anos continua muito importante.”

Como a sul-coreana Round 6, a inglesa The Crown, a espanhola La Casa de Papel e a francesa Lupin, para ficar só em produções da Netflix, Cem Anos de Solidão tem a chance de contar uma história de sabor regional com apelo universal. “Dadas as mesmas condições, podemos competir de igual para igual”, disse o ator Claudio Cataño, que interpreta Aureliano Buendía. “Podemos contar nossas histórias, colocar na telas nossos clássicos, nossa literatura mais representativa.”

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