Lili Loofbourow / Washington Post
(A resenha a seguir tem spoilers dos episódios 1 a 5 da sexta temporada de Black Mirror)
Eu me senti mais nostálgica do que animada quando surgiram as notícias de que a série Black Mirror, da Netflix, que foi ao ar pela última vez em 2019, teria uma sexta temporada. A ambiciosa antologia de ficção científica, criada por Charlie Brooker em 2011, surgiu em um momento em que algumas das tecnologias que retratava – como redes sociais e realidade virtual – ainda pareciam mais empolgantes do que enfadonhas, desadaptativas ou sinistras. O pessimismo polido da série parecia um corretivo saudável para a visão ensolarada e até celebratória que algumas pessoas tinham da tecnologia e suas “disrupções”. (Lembra quando a Primavera Árabe alimentou esperanças de que o Twitter seria um instrumento para o jornalismo cidadão transparente e uma mudança positiva?)
Isso foi há muito tempo. Era difícil imaginar como as ferramentas que a franquia dominava poderiam lidar com esse momento abatido pós-pandemia. O próprio Brooker reconheceu esse problema: “Não sei que estômago haveria para histórias sobre sociedades desmoronando”, disse ele à Radio Times em 2020. A gama estética e filosófica de distopias que Black Mirror conjurou foi impressionante e avassaladora, mas não parece que precisamos de muita negatividade compensatória agora: em vez de celebrarmos os potenciais benefícios da disrupção, muitos de nós estamos avaliando tristemente as poucas instituições que continuam intactas. E embora a série tenha feito um giro para oferecer um pouco de alívio e felicidade (como no amado episódio San Junipero, da terceira temporada), o tom geral era sombrio e razoavelmente convincente.
A nova temporada (os críticos têm todos os cinco episódios) responde ao momento, mas o faz de maneiras que desafiam algumas das principais características da série como a conhecemos.
É mais leve e mais do que um pouco sarcástica. O fato de Black Mirror ter alertado sobre os males da tecnologia por meio de um serviço de streaming relativamente novo chamado Netflix é o tipo de ironia que a série tem o prazer de destacar.
Aliás, nos dois primeiros episódios, o monstro é a própria Netflix. Em Joan Is Awful, escrito por Brooker e dirigido por Ally Pankiw, uma mulher chamada Joan (Annie Murphy) interpreta uma executiva insatisfeita que volta para casa depois de demitir um funcionário valioso e reclamar do café para encontrar o noivo por quem ela sente que está resolvida (Avi Nash). Procurando algo para assistir no Streamberry – um serviço de streaming com a mesmíssima fonte da Netflix – eles veem que a série em destaque, estrelada por Salma Hayek, com cabelos estranhamente parecidos com os de Joan, se chama Joan Is Awful [algo como “Joan é uma pessoa horrível”].
A série da Streamberry acaba sendo a história exata do dia de Joan, até suas reclamações sobre o namorado (interpretado na TV por Himesh Patel) e seu flerte com um ex (Rob Delaney no original, Ben Barnes na série-dentro-da-série). Neste ponto, na série da Streamberry, Salma Hayek (no papel de Joan) se depara com um programa de TV baseado na sua vida. Também se chama ‘Joan Is Awful’, com a Joan de Hayek interpretada por Cate Blanchett. E por aí vai. O episódio acumula uma impressionante lista de celebridades, e o grande vilão acaba sendo não o computador quântico que produz tudo isso via CGI, mas o CEO da Streamberry. Como diz Hayek: “Eles pegaram cem anos de cinema e reduziram a um aplicativo!”
É uma premissa divertida que poderia ter escolhido uma resolução um pouco menos apressada (certifique-se de assistir até depois dos créditos). Mas é engraçado.
No segundo episódio, Loch Henry, Black Mirror faz uma crítica ainda mais contundente ao serviço de streaming que o transmite. Myha’la Herrold e Samuel Blenkin interpretam Pia e Davis, um casal de aspirantes a cineastas que está indo filmar um documentário sobre um “coletor de ovos”, algo que, apesar de sua explicação pretensiosa sobre o que está em jogo, parece incrivelmente chato. Eles param na pitoresca mas abandonada cidade natal de Davis na Escócia, e quando Pia ouve por que a cidade está deserta (um serial killer), ela insiste que façam um documentário a respeito. Seus esforços para vender a ideia à Streamberry – que está tão saturada de conteúdo true crime que um executivo exige que eles encontrem algum ângulo novo ou “pessoal” – acaba com os dois e, no final, é difícil sentir algo além de desprezo por qualquer um que fique atrás das câmeras. (O episódio, por mais sombrio que seja, traz pelo menos uma surpresa divertida: em uma premiação, um dos documentários indicados é Euthanasia: Inside Project Junipero).
Você deve ter notado que Loch Henry não apresenta nenhuma inovação tecnológica. Suas engenhocas se limitam a câmeras, Polaroids e fitas VHS. O mesmo vale para Mazey Day, ambientado na Los Angeles de 2006, no qual Zazie Beetz interpreta um paparazzo com conflitos éticos que volta da aposentadoria para caçar uma estrela em crise, e também para Demon 79, no qual Nida (Anjana Vasan), uma balconista na Inglaterra de 1979, é informada por um demônio (Paapa Essiedu) que ela deve fazer coisas indescritíveis para evitar o fim do mundo.
O demônio talvez seja a maior surpresa da nova temporada e está longe de ser o único elemento sobrenatural. A virada para a comédia e a magia é uma guinada tão grande que às vezes me pego desejando que a série tivesse continuado com as confusões hilariantes e subversivas de seu tema Netflix is Awful ao longo de todos os cinco episódios. Ou Black Mirror está expandindo radicalmente sua definição de “tecnologia” para abarcar coisas como talismãs satânicos, ou está se afastando do rigor teórico da ficção científica para mergulhar no terror – ou na comédia ácida, às vezes em ambos. “Fiquei um pouco entediado de escrever [episódios que acabam] revelando que todo mundo está dentro de um computador, então uma das coisas que eu queria fazer era realmente sacudir o que é a série”, disse Brooker à GQ este mês.
Missão cumprida. Dos cinco episódios da nova temporada, apenas um – Beyond the Sea – lembra o Black Mirror clássico. Mas também é uma história de época! Situado em uma versão de 1969 com tecnologia que permite às pessoas “transferir” sua consciência para réplicas androides perfeitas, acompanha dois astronautas (Aaron Paul e Josh Hartnett) em uma missão no espaço. Eles se aproximam da vida familiar normal em casa enquanto estão em trânsito, habitando cognitivamente réplicas mecânicas terrestres de si mesmos sempre que não são necessários a bordo. As coisas mudam quando a esposa e os filhos de um astronauta são assassinados (e sua réplica destruída) por um culto do tipo Manson que considera os androides criaturas antinaturais e profanas.
É interessante que Brooker pareça ter se sentido um pouco como eu em relação a Black Mirror: nostálgico de seu velho pessimismo e mais disposto a imaginar passados alternativos do que futuros alternativos. “Parece que a distopia está chegando às margens do momento presente”, disse ele à GQ. “Muitas pessoas dizem que é como se estivéssemos vivendo num episódio de Black Mirror, então com certeza há essa sensação de olhar pelo retrovisor”.
Black Mirror (cinco episódios) está na Netflix desde 15 de junho.
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.