Se Elizabeth Zott, a heroína de Uma Questão de Química, fosse uma pessoa real, e se deparasse com o título deste texto, provavelmente odiaria a ponto de quebrar algum de seus valiosos utensílios de cozinha. Defensora de uma alimentação saudável e caseira, ela tem sua história contada de um jeito até saboroso, porém meio apressado, em que a falta de um toque original lembra... fast-food.
O novo drama da Apple TV +, é aquela série engraçadinha que você está procurando para um momento de descontração. Adaptação de um livro homônimo (da autora Bonnie Garmus, distribuído no Brasil pela Editora Arqueiro), a produção é ambientada entre as décadas de 1950 e 1960, nos patriarcais Estados Unidos da América, e mostra a trajetória de Zott, interpretada pela vencedora do Oscar Brie Larson. Ela é uma jovem cientista cujo sonho de prosseguir na Academia foi interrompido.
Sabotada pelos seus colegas de profissão, demitida enquanto grávida, mãe solo e em luto pela morte do seu companheiro, o químico Calvin Evans, papel de Lewis Pullman (Os Estranhos: Caçada Noturna), a vida de Elizabeth toma um rumo inesperado. Zott recebe o convite para ser apresentadora de um programa culinário na TV. E dá certo.
Com um jargão feminista – “crianças, ponham a mesa. Sua mãe precisa de um momento para ela mesma”, e uma abordagem diferente no preparo dos pratos, tendo a ciência como fio condutor e alimento para discussões fora da cozinha, a Elizabeth Zott seria uma espécie de Rita Lobo dos anos 1950. Uma defensora da alimentação saudável, que se opõe aos alimentos ultraprocessados, temperando suas posições com opiniões incisivas. Mesmo que isso custe um anunciante, no caso de Elizabeth, ou uma polêmica nas redes com o ‘trate o seu distúrbio’, como ocorreu com a apresentadora brasileira do GNT.
Crianças, ponham a mesa! Sua mãe precisa de um momento para ela mesma
Jargão de Elizabeth para o seu programa culinário
Mas o trunfo do feminismo, como tempero da série, não passa disso. Apesar da temática densa, Uma Questão de Química, não traz novidades na abordagem sobre o tema, e nem aprofunda as discussões. Uma pena, já que não faltaram oportunidades.
A chance perdida de maior destaque é para o arco de Harriet Sloane. Interpretada por Aja Naomi King, lançada à fama com Como Defender um Assassino, da Netflix, o personagem é modificado para a adaptação. No livro, Harriet é uma vizinha enxerida, de meia idade, presumidamente branca. Para a série, Aja dá vida a uma jovem preta, mãe de dois filhos e ativista racial. (Algo parecido foi feito – muito bem – com Mia Warren, personagem de Kerry Washington, em Pequenos Incêndios por Toda a Parte, série Prime Video).
Na série, Harriet se aproxima de Elizabeth por meio de Calvin, de quem é vizinha. E após a morte do cientista e interesse amoroso da protagonista, é com ela que Zott começa a confidenciar e a compreender algumas questões sobre si. Mas, como ironia da premissa de que ‘a arte imita a vida, ou a vida imita arte’, o feminismo branco exclui a mulher preta de sua narrativa. E a questão racial transita à margem da história central.
Outra oportunidade desperdiçada de trazer uma discussão sobre o feminismo, quiçá mais plural, foi na representação do Instituto de Pesquisa Hastings, onde Elizabeth trabalha como assistente de laboratório.
A série explora o machismo e o patriarcado quando examina as dinâmicas de gênero no ambiente de trabalho. Mas, além de não trazer nada de novo para a narrativa – algo mais interessante foi feito em Mad Men, disponível no Prime Video –, Uma Questão de Química parece reforçar um ideal de que, para se ser feminista, não é possível formar uma família ou ter interesses fora da Academia (recomendo assistir a O Sorriso de Mona Lisa’, também disponível no Prime Video, para uma abordagem mais aprofundada). Uma lição que, pelo que a trama promete, a personagem de Brie Larson poderá aprender. Fica para análise.
Os três primeiros episódios de Uma Questão de Química já estão disponíveis na Apple TV +. Novos episódios são lançados às sextas-feiras.
Dito isso, planejo assistir os cinco episódios finais da série? A resposta é: sim. Apesar do incômodo das questões apresentadas acima, e da escolha desnecessária de usar a voz imaginária do cachorro Seis e Meia como narrador, a série, no geral, diverte. E muito disso se deve à sua personagem principal. Elizabeth Zott não tem traquejo social e é uma daqueles personagens singulares que, junto de um roteiro bem amarrado, pode trazer emoções nos momentos mais inesperados.
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