No papel, Alex Cross, o psicólogo amargurado criado por James Patterson, ganha de seu colega fictício Mickey Haller, o extravagante advogado criado por Michael Connelly: 32 romances a 7. Nas telas, o jogo vira: a série de Haller The Lincoln Lawyer (no Brasil, O Poder e a Lei) estreou sua terceira temporada no mês passado na Netflix, enquanto a primeira temporada de Detetive Alex Cross, anunciada quase cinco anos atrás, finalmente chegou ao Amazon Prime Video na quinta-feira, 14.
Mas quem liga para o placar? No mercado atual parece haver um espaço infinito para investigadores brilhantes, mas machucados – e Haller e Cross compartilham essa marca essencial do herói de drama policial contemporâneo. Seus traumas pessoais – a perda dos pais e da esposa no caso de Cross, os problemas com o pai e com o vício no caso de Haller – geram grande parte da tensão de suas histórias, reduzindo a necessidade de personalidades verdadeiramente complexas ou de inteligência no desvendamento dos mistérios.
Mas há muitas maneiras de executar as fórmulas, e as duas séries fornecem experiências radicalmente distintas. Dentro dos limites da fórmula do gênio problemático, Cross representa o yin sombrio e O Poder e a Lei, o luminoso yang. Cross vai para o autoconscientemente pesado, O Poder e a Lei prefere o perigosamente leve. Mais significativo, talvez, Cross está lá para santificar seu protagonista. O Poder e a Lei, embora forneça a Haller uma cota completa de angústia, nunca nos pede para sentir pena dele.
O criador de Cross, Ben Watkins, já havia criado o excêntrico neo-noir Hand of God, também para a Amazon. Suas inclinações ali demonstradas para imagens de arrepiar e para a mistura de tons e estilos, continuam na nova série. Escolhendo não basear Cross em um romance específico de Patterson (ao contrário de adaptações cinematográficas como Beijos que matam e Na Teia da Aranha), Watkins se liberta para fazer um misto lúgubre, mas não muito emocionante, de terror de serial killer, ação de policial, panfleto sobre justiça social e sentimentalismo.
Cross, interpretado por Aldis Hodge (Leverage), é um detetive da polícia do Distrito de Columbia com doutorado em psicologia. Nós o encontramos por ocasião do assassinato de sua esposa, e por oito episódios o personagem oscila entre a tristeza e a raiva. Hodge, geralmente um ator magnético, estabelece uma intensidade gritante e sem freios.
A trama principal, em que Cross investiga o assassinato de um ativista político, acaba virando uma fantasia amalucada no estilo O Silêncio dos Inocentes. O bom senso fica para trás – numa cena constrangedora, um policial grita: “Ele pode estar em qualquer lugar!” segundos depois de o assassino escapar, enquanto ainda dá para ouvir o motor de seu carro.
Alguns atores – Eloise Mumford como um dos alvos do assassino e Isaiah Mustafa como o parceiro sensato de Cross – evitam a tendência geral para o exagero. E o sensacionalismo enervado da série vai agradar a alguns espectadores, mas mesmo estes podem se chocar com os floreios mais sádicos, que incluem sessões involuntárias de cirurgia plástica e tratamento odontológico.
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Não existe nada disso em O Poder e a Lei, drama jurídico simples e ensolarado do sul da Califórnia que tenta, com mais ou menos sucesso, aplicar um leve toque cômico-romântico ao gênero policial. Haller, interpretado pelo ator mexicano Manuel Garcia-Rulfo, é um típico personagem noir, um idealista cínico e fora-da-lei cuja arrogância o leva a colocar a si mesmo e aqueles ao seu redor em perigo.
A série começou em 2022 com um piloto de David E. Kelley, que é creditado como criador; o showrunner desde o início foi Ted Humphrey, veterano de The Good Wife. Eles sempre encontram um ponto médio satisfatório entre a superficialidade e o profissionalismo. Os personagens gostam de estilo e ritmo, e a série os proporciona.
O Poder e a Lei também tem a grande vantagem – uma vantagem que compartilha com outra série baseada nos romances de Connelly, Bosch - O Legado, da Amazon, apresentando o meio-irmão do personagem de Haller, Harry Bosch – de ser filmada em locações de verdade em Los Angeles e arredores. Quando Haller sai para comer um sanduíche, Garcia-Rulfo está de fato no verdadeiro Cole’s French Dip na Skid Row. Cross tem um fetiche pelo Ben’s Chili Bowl, mas Hodge e Mustafa comem em cenários sem vida de Ontário. (A atmosfera de noir ensolarado de O Poder e a Lei é ainda mais reforçada pela presença encantadora de Elliott Gould, que interpretou Philip Marlowe no magnífico The Long Goodbye, de Robert Altman).
Haller, que começa como uma versão elegante de advogado de porta de cadeia, vai desenvolvendo uma consciência conforme a série avança. Nos dez episódios da terceira temporada, baseada no romance The Gods of Guilt, de Connelly, as dores de Haller são agudas por causa de sua cumplicidade na morte de uma prostituta com quem ele fez amizade. Em meio a uma trama inteligente, ele reluta em defender o homem acusado de assassiná-la, o que o obriga a encontrar o verdadeiro assassino.
As reviravoltas e descobertas do caso são tão estilizadas quanto as de qualquer drama policial. Mas a abordagem relaxada e a escrita geralmente descomplicada de O Poder e a Lei fazem com que pareça mais amarrado à vida cotidiana e mais próximo da emoção humana do que a maioria das séries do gênero. Comparado com Detetive Alex Cross, é praticamente um documentário. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times.
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