Sentado no sofá, com o controle remoto nas mãos, você pode escolher um drama sobre uma família agressiva e obscenamente rica que está dividida por conflitos internos, mas se deleita em afirmar sua riqueza e seu poder, mesmo que algumas pessoas morram no meio do caminho. Ou você pode assistir Succession.
Ao contrário daquela série da HBO, Dopesick, a nova série em oito capítulos do Hulu, não ri das condutas de seus titãs da indústria. Mas a maior distinção é que Dopesick, embora seja um drama ficcional com roteiro, fala sobre o suposto papel de uma família de verdade na criação de uma das maiores catástrofes de saúde pública da história americana: a crise dos opioides.
Baseada em grande parte no livro de Beth Macy, de 2018, a série tenta dramatizar como os membros da família Sackler e sua empresa Purdue Pharma, beneficiados por regulamentações frouxas, empurraram OxyContin para a população a partir da década de 1990. A introdução de OxyContin agora é vista como o início da epidemia de opioides, que matou mais de 500 mil pessoas em todo o país e viciou outras milhões.
Os Sackler dizem que não têm responsabilidade pela crise e provavelmente nunca serão julgados, devido às vastas proteções inscritas num acordo de falência que dissolveu a Purdue Pharma no mês passado. Esse acordo aumentou ainda mais a importância da nova série para seus produtores.
“Esta série é o julgamento que deveria ter acontecido”, disse Danny Strong (Empire), que criou e supervisionou o programa, que estreou na quarta-feira, 13 nos Estados Unidos e chega no Brasil em 12 de novembro pela Star+. “O que leva a história a um ponto profundo é que se trata do lado sombrio do capitalismo americano, onde você vê o conluio do governo com a indústria”.
Dopesick se destaca numa lista crescente de livros e documentários sobre a crise, entre eles um recente documentário de quatro horas da HBO, The Crime of the Century, de Alex Gibney, baseado em vazamentos de um relatório de 120 páginas do Departamento de Justiça, de 2006, que foi mantido em sigilo enquanto o departamento tentava chegar a um acordo com a Purdue em 2007. (A Purdue se declarou culpada de “rotulação imprópria” no caso OxyContin; três dos executivos da empresa se confessaram culpados de uma contravenção relacionada à primeira acusação).
A nova série, que conta com Barry Levinson (Adeus, Amigos, Rain Man) entre seus diretores, começa, de certa forma, onde o documentário termina: usando a liberdade da ficção televisiva, a série se aventura dentro dos quatro anos de investigação por trás desse relatório – liderada por um grupo de promotores federais (interpretados por John Hoogenakker, Jake McDorman e Peter Sarsgaard) e uma agente da DEA, a agencia antidrogas dos Estados Unidos (Rosario Dawson).
Fazer uma série ficcional com roteiro também proporcionou a “vantagem única”, disse Strong, de colocar o espectador nas salas de reunião junto com os executivos da Purdue “enquanto eles discutiam suas campanhas de marketing manipulativas”. Essas cenas não são recriações perfeitas, reconheceu Strong, mas são baseadas em montanhas de pesquisas preexistentes de Macy, que é uma das produtoras executivas e ajudou a escrever a série, e em pesquisas adicionais de Strong, Macy e outras pessoas.
“É uma obra de arte, com atores falando em diálogos”, disse Strong. “Mas usei essas cenas como um canal para divulgar os fatos”.
No centro moral de Dopesick se encontra o Dr. Samuel Finnix, um médico de família na cidade fictícia de Finch Creek, nos Apalaches da Virgínia, interpretado por Michael Keaton. (Seu personagem, assim como vários outros, é um amálgama de várias pessoas da vida real). Finnix é convencido por vendedores agressivos da Purdue de que o OxyContin é uma droga milagrosa – um analgésico poderoso e de longa ação que eles insistem que causa dependência em menos de 1% das pessoas que o tomam conforme prescrito.
Mal sabe Finnix que ele, como tantos médicos de verdade, está sendo manipulado com informações falsas e enganosas sobre suas propriedades viciantes – inclusive por um rótulo extraordinariamente falaz aprovado pela Food and Drug Administration, a agência sanitária americana. O rótulo não se baseava em descobertas de testes clínicos, mas sim numa teoria propalada pela Purdue de que a droga era menos viciante do que os analgésicos de ação mais curta.
A verdade vem à tona quando Finnix começa a observar sucessivos pacientes caindo no vício – entre eles um jovem que sofreu um acidente trabalhando numa mina de carvão, interpretado por Kaitlyn Dever. Alguns deles morrem.
Keaton, que também é produtor executivo, ficou empolgado para participar da série em parte porque um sobrinho dele morreu por uso de fentanil e heroína.
“Você é consumido pelo vício”, disse Keaton numa recente entrevista por telefone. “É uma sucção da alma. Derruba pessoas muito boas. Tenho orgulho de apontar a responsabilidade dessas pessoas pelas vítimas desta crise de opioides”, acrescentou.
Quando a série não está abarrotada de investigadores e vítimas da crise, ela perambula pelas salas de reuniões e mansões de seus beneficiários, a família Sackler, cuja fortuna em abril foi estimada em cerca de US $ 11 bilhões. À frente está Richard Sackler (Michael Stuhlbarg), que precisa navegar pela política familiar e pelas regulamentações governamentais em seu esforço para criar uma droga de sucesso e chegar à presidência da empresa.
(Uma porta-voz da agora dissolvida Purdue Pharma, Michele Sharp, se recusou a fazer comentários para esta matéria; Paul Holmes e Davidson Goldin, porta-vozes dos dois ramos da família Sackler com histórico de propriedade da Purdue Pharma, também se recusaram a comentar).
Strong logo cedo decidiu fazer da investigação dos procuradores americanos a “espinha dorsal da narrativa” da série, disse ele. Ele então resolveu que a intercalação entre as maquinações internas da Purdue e as pessoas que sofrem em Finch Creek ofereceria “uma verdadeira compreensão do que aconteceu”.
Macy disse que convenceu Strong a contratar o romancista Robert Gipe (Trampolim) para garantir que a série mostrasse a pequena cidade dos Apalaches sem estereótipos. Ela também trouxe várias fontes para a sala dos roteiristas, incluindo ex-funcionários da Purdue e um médico que falou sobre a pressão que ele sentia dos representantes de vendas e sobre seu próprio vício.
Strong e Keaton ficaram surpresos ao saber como a droga muda a química do cérebro das pessoas, mesmo quando tomada conforme prescrito.
“Me chocou muito a ideia de que seu lobo frontal fica alterado e pode levar dois anos para se recuperar”, disse Strong.
Com isso em mente, Strong disse que fez da “recuperação e da cura o grande enredo dos últimos episódios”, na esperança de tirar o estigma do tratamento para o transtorno do uso de opioides. Para Macy, isso significava enfatizar a eficácia do tratamento assistido por medicamentos, no qual os viciados usam um opioide menos perigoso como a metadona ou o Suboxone para recuperar suas vidas.
Mas também significava ter certeza de incluir certos detalhes para ajudar a esclarecer os fatos, como a bem documentada diretiva de Richard Sackler, num e-mail de 2001, para “martelar os viciados” e retratá-los como culpados.
“Eles culparam as pessoas erradas e se safaram”, disse Macy. “Espero que as pessoas entendam que muitas pessoas ficaram viciadas não por culpa própria, mas porque a Purdue espalhava a mensagem de que os opioides agora eram seguros. Espero que a série abra corações e mentes sobre quem são os verdadeiros criminosos”.
Ryan Hampton, ex-funcionário da campanha de Bill Clinton e autor do novo livro Unsettled, que também trata da crise dos opioides, concorda; ele disse que a série pode ajudar os americanos a ver que o problema não são os usuários de drogas.
“Não queríamos fazer mal a nós mesmos”, disse Hampton, que se machucou durante uma caminhada em 2003 e usou opioides. Ele ficou viciado, abusou de OxyContin e, depois, de heroína. Chegou a perder o emprego e a casa antes de se livrar do vício em 2015.
“São pessoas em salas de reuniões trazendo morte e destruição para nossas comunidades”, disse ele. “Ter rostos reconhecíveis nesses papéis pode ser transformador na formação de atitudes mais positivas”.
Mas Strong e Macy garantiram que Dopesick olhasse para além das condutas da Purdue Pharma e também mirasse um governo federal que muitas vezes fez vista grossa – ou pior – para os perigos, enquanto deixava os dólares do financiamento de campanha rolarem.
“Os Sacklers são a visão micro da história”, disse Keaton. “Mas a macro está olhando para todas as corporações que causaram danos exponenciais, especialmente para as pessoas de classe baixa e média e suas comunidades”.
TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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