No velório de um grande amigo, um ex-casal trava um diálogo ainda cheio de mágoas. “Qualquer coisa era melhor do que continuar casada com você”, diz a personagem feminina ao ser questionada se ela estava curtindo a vida, como havia expressado que desejava. “Eu gostava. Cada um em um quarto. Era triste e civilizado”, rebate o ex-marido, sobre os anos em que viviam ‘juntos’.
Fim, série que estreia no Globoplay nesta quarta-feira, 25, é rodrigueana por parte de mãe – a produção é uma adaptação do livro homônimo escrito pela atriz Fernanda Torres – e por parte de pai - ganhou direção artística de Andrucha Waddington, que não perde de foco a estética de uma tragicomédia no estilo Nelson Rodrigues, mesmo quando chega bem perto dos dias atuais.
Nesse sentido, na produção dos capítulos – o Estadão assistiu aos episódios um, dois, sete e ao último, do total de dez --, não há cena desperdiçada. Nem em texto e tampouco em imagem. Tudo está a serviço de escancarar o culto à aparência da sociedade brasileira, tendo como pano de fundo a amizade entre cinco homens que viveram o auge de suas vidas na década de 1970, no Rio de Janeiro, e se deparam com a finitude da vida a partir da morte de um deles, Ciro (Fabio Assunção), o primeiro da turma a morrer, nos anos 1990.
Adaptada pela própria Fernanda, a série Fim ganhou, para a produção audiovisual, quatro mulheres centrais na trama, que se relacionam com os homens e são determinantes para decifrar suas vidas. Ao mesmo tempo, são vítimas do machismo desses personagens masculinos. Se no livro a escrita se dá em primeira pessoa e a autora caminha morte pela morte, na série dois tempos lineares correm em paralelo para dar conta de quatro décadas.
Dessa forma, os casais Ciro e Ruth (Marjorie Estiano), Álvaro (Thelmo Fernandes) e Irene (Débora Falabella), Neto (David Júnior) e Célia (Heloisa Jorge) se relacionam e também são atravessados pelos amigos Silvio (Bruno Mazzeo), Ribeiro (Emílio Dantas) e Norma (Laila Garin). Fernanda faz uma participação afetiva na série, como irmã de Ribeiro.
“A Nanda (Andrucha e Fernanda Torres são casados) criou um folhetim rodrigueano classudo. A gente reflete sobre a sociedade, sofrendo e se divertindo. A gente consegue colocar isso no entretenimento, e o mérito é todo dela. Foi a coisa mais rodrigueana que eu filmei na vida, escrita por uma mulher e não por um homem”, diz o diretor, que tem como parceira na função Daniela Thomas.
Fim, lançado em 2013, foi o romance de estreia de Fernanda. Andrucha não vê acaso no fato do livro ter essa inspiração no autor pernambucano. Fernanda Montenegro, mãe de Nanda, foi amiga de Rodrigues. Para ela, o dramaturgo escreveu a peça O Beijo no Asfalto.
“Tem algo de bonito, de família de circo. Ela respirou isso desde pequena. E ela vira uma autora. Descobriu essa habilidade e se reinventou como profissional. Eu sou incapaz de escrever uma linha. Sou capaz apenas de filmar”, diz o diretor.
Marjorie Estiano conta que a leitura dos episódios foi um processo difícil. Um certo desconforto tomou conta dela. O jeito foi buscar a origem dessa sensação que a princípio a incomodou tanto.
“Há muito desencontro. A mulher, por um contexto sociocultural, é muito submetida. Elas não têm perspectiva fora do casamento. E isso é uma prisão”, diz a atriz. “Não há questionamento sobre o que estamos fazendo aqui”, completa.
Marjorie não culpa Ruth. “Parte do conflito dela é com o casamento, a outra é com o filho. A série bate nesse ponto da tal idealizada família tradicional brasileira que nunca existiu. É uma idealização de papai, mamãe, amor, cuidado e carinho. Essa perfeição não existe em relacionamentos e não existe em família”, diz.
Andrucha explica que com o passar dos episódios tudo vai ruindo. “A pureza se transforma. É Deus e o Diabo na Terra do Sol”, exemplifica, citando o filme de Glauber Rocha, exemplo clássico de produção sobre contestação social.
Há muito desencontro. A mulher, por um contexto sociocultural, é muito submetida. Elas não têm perspectiva fora do casamento
Marjorie Estiano
Toda essa transformação caminha junto com o cenário da série, a cidade do Rio de Janeiro, mais especificamente o bairro de Copacabana. “Começamos nos anos 1960, que é a despedida da capital. Os anos 1970 são como o último baile da Ilha Fiscal. Na década de 1980, começa a decadência. Nos anos 1990 e 2000, o Rio afunda. Então, a série vai da beleza do período pós bossa nova à Copacabana cinzenta, poluída”, analisa o diretor.
A bossa, aliás, está presente na série, em canções como Samba em Prelúdio, em um início de paixão entre Ruth e Ciro. Já Divino Maravilhoso, na voz de Gal Costa, uma espécie de ruptura com a bossa, tem papel ainda mais marcante na vida do casal e vai ressoar no último episódio. Marjorie, para a alegria de seus fãs, canta.
Os atores envelhecem aos olhos do público
Em Fim, cada personagem tem uma personalidade muito definida. Marjorie e Andrucha fazem questão de pontuar cada uma delas na conversa com o Estadão. Eles os definem da seguinte forma: Ruth, a sinhá; Ciro, o ídolo, Silvio, o hedonista; Ribeiro, o trágico; Álvaro, o doce; Irene, a histérica; Norma, a verdadeira brasileira; Neto e Célia, a classe média que sofre as consequências do sistema.
Essas características se apresentam também na caracterização dos atores. E todos atravessam as quatro décadas da história. Não há troca de ator para representar as diferentes fases.
Dessa forma, o público vê Fábio Assunção, por exemplo, novamente com 20 e poucos anos, de cabelos louros compridos e o vê moribundo em uma cama de hospital, todo grisalho. Emílio Dantas pode estar tanto com energia de um jovem salva vidas na praia quanto como um idoso que caminha pelas ruas de Copacabana, já frágil.
“Foi uma pirueta em um trapézio sem rede. Ou dava certo ou a gente estava f... No final, fomos felizes”, adianta Andrucha.
Para depois dos anos 2000
Para Andrucha sempre pareceu que claro que a adaptação de Fim para o projeto audiovisual se apresentasse como uma série e não como um filme – ele é diretor de longas como Eu, Tu, Eles (2000), Casa de Areia (2005) e Chacrinha – O Velho Guerreiro (2018) -, justamente pela narrativa percorrer quatro décadas.
“É uma obra fechada”, diz. Marjorie quer mais. “Queria saber qual o resultado desses casais. Os filhos deles. Era uma criação sem planos, no estilo vai indo, vai indo...” diz a atriz. “A encomenda é boa”, brinca o diretor.
Marjorie e Andrucha têm uma relação muito estreita, sobretudo pelo trabalho na série médica Sob Pressão, com quatro temporadas exibidas na TV– a quinta, exclusivamente no Globoplay. O trabalho deve se encerrar em breve quando um segundo filme – o primeiro é de 2016 – marcará o fim da saga dos doutores Carolina (Marjorie) e Evandro (Júlio Andrade).
“Marjorie é minha parceira de vida. E isso é muito caro para mim”, diz o diretor. Marjorie devolve o elogio. “O Andrucha é daqueles encontros de vida que mudam rotas. Ele me apresentou uma outra perspectiva sobre trabalhar em conjunto. Ele conduz tudo de maneira amorosa e precisa”.
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