Jesus Cristo é estrela de série na Netflix

‘The Chosen’ começou em um aplicativo e já é um dos maiores projetos de mídia com financiamento coletivo já produzidos

PUBLICIDADE

MIDLOTHIAN, TEXAS - No relato bíblico do milagre dos peixes, Jesus usa dois peixes e cinco pães para alimentar uma grande multidão. A pouca comida se multiplica sobrenaturalmente para satisfazer cinco mil pessoas que se reuniram para ouvi-lo falar perto do Mar da Galileia.

PUBLICIDADE

Reencenar esse momento para a televisão talvez seja um outro milagre: nove mil figurantes se reuniram ao longo de três dias em um acampamento do Exército da Salvação ao sul de Dallas neste verão. Não eram atores pagos, mas devotos do programa de televisão que estavam fazendo. Muitos deles viajaram o país inteiro para enfrentar o calor do Texas, uma recompensa por doar até US$ 1 mil cada para financiar o programa.

The Chosen, uma série de televisão de sucesso surpreendente, é anunciada como o primeiro programa de várias temporadas sobre a vida de Jesus – e um dos maiores projetos de mídia com financiamento coletivo já produzidos. A terceira temporada começará a ser transmitida online em meados de dezembro.

Cena da série 'The Chosen', sobre a vida de Jesus Cristo Foto: Netflix

Concebida por um criador pouco conhecido, sem grandes estrelas e, a princípio, financiada sobretudo por pequenas contribuições sem o apoio de um estúdio de Hollywood, a série começou em um aplicativo e agora é distribuída gratuitamente. Mas, apesar do começo inusitado, a série dramática sobre fé se tornou um fenômeno genuíno em muitas partes da cultura cristã, atraindo um fervoroso fandom ecumênico – continuando quase invisível para o resto das pessoas.

Publicidade

Globalmente, 108 milhões de pessoas assistiram a pelo menos parte de um episódio de The Chosen, de acordo com uma análise preparada a pedido de seus produtores por Sandy Padula, consultora independente. O programa agora também é transmitido em plataformas como Peacock, Amazon Prime Video e, a partir desta semana, Netflix. Os produtores recentemente anunciaram que a terceira temporada também estará disponível em um novo aplicativo The Chosen.

Os dois primeiros episódios da terceira temporada estrearam juntos nos cinemas americanos em 18 de novembro e arrecadaram mais de US$ 8 milhões, ficando em terceiro lugar nas bilheterias do fim de semana, atrás de filmes convencionais que foram exibidos em mais salas. O lançamento nos cinemas de um especial de Natal no ano passado se estendeu por semanas além do planejado e superou US$ 13,5 milhões em vendas de ingressos – uma fração da bilheteria dos maiores filmes de Hollywood, mas um recorde para a Fathom Events, uma grande distribuidora especializada em eventos e exibições de curta duração.

O programa apareceu pela primeira vez em 2019, mas só encontrou seu público durante a pandemia de coronavírus. As duas primeiras temporadas têm oito episódios cada.

Quando a imensa igreja evangélica de Felicia Maize nos subúrbios de Dallas fechou temporariamente em março de 2020, amigos enviaram mensagens de texto a incentivando a conferir a série.

Publicidade

Maratonar Jesus

“Este Jesus pisca os olhos”, Maize se lembrou de um amigo dizer a ela. Não era um personagem rígido e distante em uma pintura antiga: era próximo, como um melhor amigo, disse ela. Alguns episódios depois, ela já tinha sido fisgada. A série se espalhou entre seu grupo de amigos e “sustentou a todos”, disse ela. “Nós maratonamos Jesus”.

A série se baseia nos quatro Evangelhos, que seguem Jesus desde o nascimento até sua ressurreição após ser crucificado pelo Império Romano. Mas o criador e diretor do programa, Dallas Jenkins, cristão evangélico, desenvolveu novas histórias e personalidades elaboradas para as pessoas ao redor de seu personagem central.

O Jesus de The Chosen é sereno, carismático e íntimo – uma espécie de terapeuta itinerante. No mundo de The Chosen, Maria Madalena é alcoólatra e vítima de agressão sexual. Mateus, o discípulo cobrador de impostos, é retratado no espectro do autismo, e Tiago Menor tem uma deficiência física. (O ator que o interpreta, Jordan Walker Ross, tem escoliose e paralisia cerebral leve).

A tática de expandir os personagens em torno de Jesus significa que há material suficiente para preencher sete temporadas planejadas e novas histórias suficientes para justificar o medo de “spoilers” em uma das narrativas mais conhecidas da história humana. A série traz relacionamentos complexos, suspense, intriga política e momentos carregados de emoção.

Publicidade

Ryan Swanson e Tyler Thompson, que assinam o roteiro com Jenkins, listam influências como Game of Thrones, The Wire, Battlestar Galactica e Star Trek – a última porque é sobre “um capitão e mais umas doze pessoas”, disse Swanson.

O fato de The Chosen aspirar ao prestígio secular da TV faz parte de seu apelo para um público que se resignou a produtos de entretenimento que muitas vezes são imitações menores de sucessos do mainstream. Muitos fãs dizem que os valores de produção do programa os atraíram. “É muito menos brega do que estou acostumado a ver”, disse Luke Burgis, escritor católico que ano passado assinou um ensaio intitulado Por que amamos tanto ‘The Chosen’ para a revista evangélica Christianity Today. Ele geralmente evita a mídia cristã, disse, mas o programa é “como qualquer outra coisa que você encontra na Netflix”.

House of Cards

Neal Harmon, cofundador da Angel Studios, distribuidora das duas primeiras temporadas, disse que o programa foi seu primeiro sucesso: “O que House of Cards foi para a Netflix The Chosen foi para a Angel Studios”, disse ele. (Como equipe de marketing, Harmon e seu irmão, Jeff, estão por trás de campanhas publicitárias para produtos como Squatty Potty e Poo-Pourri).

Jenkins recorre a um painel com um cristão evangélico, um acadêmico católico e um rabino messiânico para revisar os roteiros. Mas às vezes surgem controvérsias. Durante a segunda temporada, Jenkins enfrentou acusações de blasfêmia sobre questões como a “recaída” de Maria Madalena no pecado depois de ser salva.

Publicidade

Para muitos espectadores, o apelo do programa é que ele não é ostensivamente político.

“Você não pode infundir a política americana na Judéia do primeiro século”, disse Erin Moon, podcaster evangélica em Birmingham, Alabama, que recomendou o programa a seus ouvintes. “A série tem uma coisa muito pura que não vemos em muitas igrejas americanas agora.”

“Apenas pregue o Evangelho” é um clichê entre alguns cristãos cansados das batalhas culturais e políticas nos espaços espirituais, disse Moon. Mas, na opinião dela, The Chosen é diferente.

The Chosen é “meu programa de TV favorito”, disse ela. “É a matéria do meu evangelho.”

Publicidade

Jonathan Roumie, que interpreta Jesus, desempenhou o mesmo papel em três curtas-metragens dirigidos por Jenkins. Como a maioria dos atores do programa, ele também parece ter nascido no Oriente Médio: seu pai é egípcio.

Para alguns espectadores, é difícil não confundir Roumie com seu papel como Filho de Deus.

E, de certa forma, o ator assumiu o papel de líder espiritual. Ele tem uma parceria com o Hallow, um aplicativo católico de meditação e oração que também trabalhou com celebridades como Mark Wahlberg e Brett Favre. Na primavera, ele colaborou em uma produção do Hallow com Jim Caviezel, que interpretou Jesus em A Paixão de Cristo, dirigido por Mel Gibson. (Os dois nunca se encontraram pessoalmente, disse Roumie, que completou, brincando: “talvez o universo explodisse”).

Nos primeiros meses da pandemia, Roumie liderou uma sessão diária de oração no Instagram, rezando o Terço da Divina Misericórdia para milhares de pessoas. Acompanhar as orações “virou parte da minha rotina”, disse Anusha Jebanasam, moderadora da página de fãs de Roumie no Facebook.

Publicidade

Jenkins, a outra face do programa, apresenta episódios online e interage com os fãs; muitas vezes é reconhecido em público. O fato de o programa ser financiado por crowdfunding faz com que muitos espectadores se sintam pessoalmente investidos em seu sucesso e se vejam como parte de uma comunidade. Quando Jenkins posta sobre um evento nas redes sociais, disse ele, “as pessoas muitas vezes respondem nos comentários: ‘Não posso ir, estarei no estudo bíblico’”.

Em junho, Jebanasam viajou de sua casa na Austrália para atuar como figurante no set no Texas.

“Todas essas cinco mil pessoas aqui são novas amigas”, disse Lori Mejaly, católica de Detroit que estava sentada em uma mesa dobrável durante um intervalo com George Pechulis, batista de Wyoming, que ela acabara de conhecer. “Estamos todos sob um mesmo Deus.” / Tradução de Renato Prelorentzou

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.