“Isso não é justo” é uma frase recorrente para quem assiste Justiça 2, série que deixa a TV e estreia direto no GloboPlay nesta quinta, 11. Essa também é a reação de Júlia Lemmertz diante das situações vividas pela personagem interpretada na antologia. Em longa entrevista ao Estadão, ela descreve a produção escrita por Manuela Dias como um choque de realidade: “A vida realmente não é justa.”
Manuela é conhecida por imprimir as zonas cinzentas da sociedade e o contraditório humano nos seus trabalhos e a atriz topou participar do projeto antes mesmo de saber qual seria a personagem destinada a ela.
Na primeira temporada — exibida na Globo em 2016 e agora disponível no streaming da emissora —, quatro personagens têm as histórias entrelaçadas por acontecimentos complexos, provocando sempre a prisão simultânea deles. Em Justiça 2, outras personagens surgem sob o mesmo formato. Somente Leandra Leal retorna ao elenco.
Neste ano, a antologia coloca novamente em xeque as percepções do certo, errado, acaso e azar com Balthazar (Juan Paiva), Jayme (Murilo Benício), Geíza (Belize Pombal) e Milena (Nanda Costa). O cenário também é novo: Brasília e Ceilândia, no Distrito Federal. Os quatro primeiros episódios entram no ar nesta quinta, 11, às 18h, e pelas próximas seis semanas são disponibilizados no mesmo dia.
Lemmertz orbita por uma destas histórias e conta como foi o dilema interno para interpretar a homônima Júlia, uma mãe confrontada pela descoberta de que o próprio irmão, Jayme, — o provedor da família — estuprou repetidamente a filha dela (Alice Wegmann) quando adolescente. “Tentando acertar, ela erra muito”, diz, sobre a personagem.
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Ela também fala do espaço nas artes para atrizes da idade dela, que completou 61 anos em março, reflete sobre a iminência da morte e pondera sobre a vida em um mundo em erupção.
Lemmertz ainda explica por que acha que uma atual Helena de Manoel Carlos seria uma Marielle Franco e confidencia que pedia desculpas póstumas à mãe quando interpretou a última das Helenas na novela Em Família — que deveria ter sido uma homenagem a Lílian Lemmertz, a primeira a assumir esse nome na tela, e não deu muito certo.
A entrevista foi condensada e editada para assegurar mais clareza.
Você queria muito trabalhar com a Manuela Dias. Como foram expectativa e realidade?
A Júlia foi uma porrada para mim. A minha expectativa não era de um passeio no parque, de me divertir. Esperava uma porrada e foi. A realidade foi dura, mas foi muito boa. Eu sabia que eu desejava estar naquele lugar. Fiquei muito feliz quando o Gustavo Fernandes me chamou, um diretor que admiro imensamente e tem trabalhos incríveis. Feliz também porque queria muito trabalhar com a Manuela Dias, que é uma autora espetacular e uma mulher incrível. Ela entra num lugar do humano tão profundo, e às vezes tão cruel, de sermos contraditórios, complicados, injustos, apaixonados e errados. Tudo ao mesmo tempo. Ela tem uma carpintaria e um texto muito bom.
Como é a Júlia de Justiça?
É uma mulher muito triste. Carrega uma vida em que não conseguiu tomar as decisões que deveria por fraqueza. Ela é fruto de uma falta de coragem. Mas é muito interessante fazer uma personagem como essa, porque ao mesmo tempo é uma mãe muito amorosa que vive para essa filha. Tem essa filha quase como um sol na vida dela. A mãe sempre tem essa sensação de que pode proteger o filho e a Júlia sofre e adoece por isso também, porque não protegeu a filha dela quando ela deveria. Não defendeu.
Acho que é a pior dor — fora perder um filho, que deve ser a dor suprema — você não conseguir evitar que seu filho sofra. Tentando acertar, ela erra muito. É muito difícil para mim, como mãe, fazer uma mãe como ela. Porque em algum lugar eu a entendo profundamente. Por isso digo que o texto da Manuela tem esses lugares. Ninguém é uma coisa só. Ser bom e ao mesmo tempo mau. Todo mundo tem múltiplas facetas. E a vida realmente não é justa.
A vida acontece…
A vida acontece o tempo todo. A vida é para os corajosos, para gente que não se apequena diante das dificuldades. Então é uma série épica nesse sentido dos homens tentando superar suas coisas e passando por provações hercúleas. A vida não para e a série tem isso de que em um segundo tudo muda.
E você mudou com a Júlia?
Todo trabalho sempre muda. Acrescenta alguma coisa. Eu fiquei muito mexida com essa história de não perceber os seus filhos. De criar uma pessoa e de repente acontecer uma coisa muito forte e você não ver. Mais do que isso: não querer ver. Porque aquilo te afeta num lugar que você não quer admitir que possa ser verdade. Isso é desesperador. Eu saía do estúdio bem mexida. Ela foi intensa apesar de não ter muitas cenas. Eu tenho uma parte muito presente no desenrolar das coisas e muito pontualmente importante.
A Júlia é uma mulher madura e você vem trabalhando sem parar. Apesar dessa dita “ditadura da juventude”, há espaço para atrizes veteranas?
Como tudo na vida, os extremos vão se mostrando impraticáveis, porque ninguém vive nem é jovem para sempre. Envelhecer não é uma questão para mim porque vi pessoas que amo envelhecerem lindamente. Minha mãe morreu muito nova, aos 48 anos, então infelizmente não a vi envelhecer. Mas me lembro que a vida do meu pai deu uma guinada depois dos 60 anos e ele começou a fazer só o que queria, só fazer teatro e coisas que ele realmente gostava. Isso me inspirou muito. Eu não tenho mais 60 ou 40 anos pela frente. Tenho, com sorte — e espero com saúde —, uns 25. Estou tentando não perder tempo com bobagem.
Tive sorte de encontrar papéis bacanas, como nas séries Chuva Negra e No Ano Que Vem. Mulheres da minha idade, de 50 e pouco, 60 anos. É claro que o mercado vai se fechando, mas acho que ele não se sustenta só falando da juventude. Espero que diretores e autores sempre tenham em mente que a construção de uma história precisa contemplar a todos. Histórias incríveis podem ser contadas em todas as fases da vida. A gente gasta.
Eu não deixo de pensar na morte. A finitude para mim é algo que anda com a pulsão de vida. Eu queria morrer como meu avô: dormindo. Ele foi sestear e não levantou. Pronto. Apaga. Confesso que tenho consciência de que fiz e tenho feito trabalhos incríveis e são mulheres da minha idade, acho isso maravilhoso. É muito animador, dá um ânimo na vida.
‘Justiça 2′ e o recente filme que você fez, ‘Tempos de Barbárie’, são histórias sobre estar no limite, como estivemos durante a pandemia. Os limites da covid mudaram as pessoas. Teve mudança no ofício e na indústria de atuação também?
Teve, tem, está tendo e terá, eu acho. Na época a mudança veio na abertura de brechas em lugares insuspeitos para continuar produzindo. Você podia ver teatro no Instagram ou no YouTube. Podia gravar nas casas dos atores. Eu fiz uma novela no meio dessa pandemia, Quanto Mais Vida Melhor. Pela primeira vez, uma novela aberta, fechada. Só estreou quando acabou de gravar. No teatro, o público sentiu falta. Fiz dois espetáculos com muito público em 2022 e 2023.
A pandemia nos afastou, mas aproximou no sentido de tratar da urgência das coisas. Trocar ideias e estar junto presencialmente é insubstituível. Mas a humanidade como todo a está meio convulsionado, não tem a ver só com a pandemia. Ela foi um prenúncio desse mundo superfaturado, superpopulado, superquente, super sujo, injusto. Estamos vivendo o fim de uma era, de um mundo como o conhecemos. Ou mudamos, ou o mundo mudará sem a nossa ajuda. Quando você me pergunta o que mudou, acho que estamos mais conscientes, talvez. Até quem não acreditava em aquecimento global está sentindo na pele, algo real. Nós somos o vírus. Nós somos os predadores.
Talvez tenhamos de parar de achar que a natureza é algo externo. Nós somos parte dela. Se começarmos a agir como parte, talvez as coisas comecem a dar certo. Tenho ainda uma certa esperança de que consigamos. Mas já fui para outro lugar que não tem nada a ver com a nossa história aqui.
Talvez tenha. A sua mãe fez a primeira Helena em 1981 em um mundo totalmente diferente deste nosso. Você fez a última em 2014, também com muitas diferenças. Você acha que tem espaço para uma Helena hoje?
Seria muito interessante ter acontecido uma Helena agora. A Helena é absolutamente contemporânea e moderna. Absolutamente humana. E ela é assim desde que a minha mãe fez. Porque ela é uma heroína toda errada. Faz coisas de que se arrepende. Quando a mãe fez a Helena, ela tinha muito da minha mãe. Muito das histórias que estavam na Helena eram coisas que ela conversava com o Manoel Carlos e iam construindo juntos aquela mulher real, que tenta equilibrar os pratinhos da família, do amor, da liberdade. Acho bonito pensar que ela se reproduziu porque a primeira Helena foi muito interessante. E o Maneco é um escritor extraordinário que fala da vida cotidiana de uma forma muito incrível para falar do mundo inteiro.
Como você acha que seria uma Helena hoje?
Talvez ela fosse sozinha, ou apaixonada por uma mulher. Tivesse um relacionamento homoafetivo e fosse tudo bem. Talvez ela fosse realizada no amor, porque ela sempre sofreu por amor. Ela poderia ser uma mulher múltipla. Talvez as questões fossem outras, mais no nível político, social. Ela poderia inclusive estar na política. Uma Helena hoje seria talvez até uma Marielle Franco. Uma mulher que luta pelas causas sociais e que está envolvida politicamente nas coisas.
Porque, amor, política é sobre nós, política está em tudo, é o jeito que você se coloca no mundo. Então acho que [a Helena] seria uma superativista, de repente, uma mulher que falasse das questões importantes atuais e que estivesse nessa luta. Uma luta pela qual Marielle foi assassinada. Acho que ela seria essa mulher que joga nas onze. E que fala com o mundo real, com o mundo atual. Mas acho que talvez possa se fazer uma história sobre essa mulher sem ser a Helena. Ela acabou com a escrita do Maneco. Foi uma era que se encerrou. Outras virão.
Como foi para você fazer a Helena em homenagem à sua mãe?
Fico com pena que a Helena que me coube já era uma Helena diferente. Aconteceram coisas no caminho e não conseguimos realizá-la plenamente. E eu sinto muito por isso porque, na verdade, eu fui chamada para fazer uma homenagem para a minha mãe. Passei a novela inteira pensando nela. Chegava a falar: ‘Mãe, desculpa. Estou fazendo o meu melhor, mas está difícil’. Foi difícil para o Maneco escrever, já era o final do gás dele para escrever uma novela inteira. Tivemos percalços, como toda novela tem. Fazer uma novela é uma empreitada.
E acho que a televisão como um todo mudou muito, que pegamos o início dessa mudança — até do gosto do público. Eu não credito a ninguém… E a todos nós. Você entra naquele túnel e você só sai quando chegar no final. Talvez você possa abandonar se você quiser, mas eu nunca me senti nesse lugar de dizer que vou sair, não aguento mais. Foi uma luta fazer aquela Helena, mas no final das contas me diverti e fiz intimamente a minha homenagem à minha mãe.
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