A terceira temporada da série A Divisão chega ao Globoplay nesta sexta-feira, 29 de setembro, com um reforço no elenco: o ator Marcelo Adnet . Ele será Armando Albuquerque, um poderoso executivo de gravadora - a trama se passa no início dos anos 2000 - que será vítima de um sequestro. Na história criada por José Junior e José Luiz Magalhães, Armando passa cinco semanas no cativeiro.
Armando será salvo pela equipe da DAS (Divisão Antissequestro) comandada pelos policiais Carlos Mendonça, interpretado por Silvio Guindane, e o investigador Juliano Santiago, personagem de Erom Cordeiro, os protagonistas de A Divisão.
“Enquanto a equipe trocava a luz, eu ficava deitado no colchonete, algemado em um botijão de gás. O clima era pesado e bom para um ator. Entrei em transe. Me animalizei”, conta o ator, que raspou os cabelos em cena.
O personagem exigiu de Adnet, conhecido por seu trabalho na comédia, uma preparação bastante diferente e intensa, segundo ele contou ao Estadão. A ordem no set, comandado pelo diretor Lipe Binder, era ser o mais realista possível, uma marca da série.
Adnet foi além. Para atingir o resultado que desejava para seu primeiro grande papel dramático, ele teve contato com ex-sequestradores, egressos do sistema prisional. O encontro foi organizado por José Junior, fundador do AfroReggae, ONG que promove a inclusão e a justiça social por meio da arte. Segundo ele, isso foi fundamental para ele entender os pormenores de um sequestro.
“Para mim era impensável olhar para um ex-sequestrador. Mas, você senta com os caras e eles são dóceis, carinhosos. Fica uma dúvida: como eu os classifico? Eles são ou foram sequestradores? Será que estou sendo muito permissivo?”, diz, sobre uma das reflexões que o trabalho em A Divisão lhe gerou.
Além da participação na série, Adnet continua no canal SportTV, como comentarista da rodada de jogos do fim de semana. Trabalha ainda, sob o comando da diretora e roteirista Patrícia Pedrosa, na retomada do núcleo de humor da TV Globo, além de estar no ar com o programa Sobre Nós Dois, que comanda no GNT ao lado de Sabrina Sato, que já teve suas gravações encerradas.
Você nasceu em 1981. Na infância e na adolescência deve ter acompanhado casos de grandes sequestros, tema da série, como o do empresário Abílio Diniz e, mais para frente, do irmão dos cantores Zezé di Camargo e Luciano. Como lembra desse período do Brasil?
Morar no Rio de Janeiro (Adnet foi criado no bairro de Botafogo, na zona sul do Rio) é conviver com grandes problemas urbanos, sobretudo desigualdade social e violência. Tenho uma memória forte dessa época. Esse foi o mundo que eu conheci como realidade. Lembro que era uma criança muito para dentro, não tinha muita confiança em uma sociedade que era extremamente cruel. Se compararmos com hoje, naquela época, havia discursos muito atrasados, sobretudo na educação. A DAS conseguiu erradicar esse tipo de sequestro. Mas a violência não diminuiu. Ela se sofisticou, foi para outros lugares, se estruturou. Hoje vivemos uma violência 2.0.
Você já conhecia sobre essas questões, sobretudo a respeito de sequestro, ou foi buscar informações para fazer a série?
Eu tinha um conhecimento como qualquer cidadão carioca interessado no assunto. Sou jornalista, sempre tive interesse em conhecer o que me cerca. Para a série, me inteirei bem mais sobre o assunto. O José Júnior fez algo bastante interessante. Ele organizou uma reunião para mim com ex-sequestradores que atuaram na década de 1990. Essas pessoas foram presas, ficaram cerca de uma década na prisão e foram soltas. Elas saem condenadas pela sociedade, não conseguem emprego.
Uma parte de nós julga: essa pessoa fez um mal, foi cruel com alguém. Por outro lado, ela já passou pela cadeia, não está mais envolvida nessas atividades e está a fim de se reintegrar. Essas pessoas me expuseram os pormenores dos sequestros, a falta de interesse em maltratar as vítimas. Tiveram ex-sequestradores que me contaram sobre o pai do Romário, por exemplo. Que ele pediu cigarro, cerveja e um baralho para jogar. Eles atenderam os pedidos. Isso serve para controlar a vítima.
Na série, pude trabalhar com algumas dessas pessoas, como atores e orientadores. São profissionais empregados pelo AfroReggae que faz esse trabalho de reintegração de quem não está mais no crime. Para aumentar mais ainda a dose de realismo, fizemos as cenas de cativeiro em um barraco lá no alto do Morro do Borel que já serviu de cativeiro um dia. Apesar de ser um lugar bonito, na Floresta da Tijuca, havia uma carga emocional forte lá.
Isso foi importante para seu trabalho?
Sim. Eu, como ator, consigo imaginar como é se apaixonar, como é se frustrar em uma relação amorosa, estar doente, deprimido, eufórico, triste. Mas nunca fui sequestrado. Era uma papel que exigia uma preparação especial. Como é que se comporta um sequestrado? Sei lá...
A preparadora de elenco, a Isadora Ferrite, também me ajudou muito. Como um comediante vai fazer um personagem que em 80% dos capítulos está em um cativeiro? Tive que me entregar totalmente.
Quase não consegui dormir com a minha esposa (a atriz Patrícia Cardoso). Estava com as unhas muito grandes. Dava umas unhadas nela à noite, sem querer. Raspei o cabelo em cena, apanhei, chorei. Me entreguei mesmo.
Enquanto a equipe trocava a luz, eu ficava deitado no colchonete, algemado em um botijão de gás. O clima era pesado e bom para um ator. Entrei em transe. Foi muito intenso. Me animalizei. O sequestrado se torna uma pessoa assustada, perde suas referências. Pensei realmente que estava ali, sequestrado.
Foi seu papel mais forte como ator até agora?
Quando eu faço a imitação do Galvão Bueno, por exemplo, em uma situação confortável, em estúdio, com clima leve, também é um transe. Eu estou recebendo o Galvão. O que ele faria? Para onde ele olharia? Se ele engasgar ao falar, como ele resolve? Mas, em A Divisão, em um papel dramático, sim, foi a minha experiência mais forte como ator. E confesso algo para você: espero que me abra portas na dramaturgia. Às vezes, os atores de comédia ficam isolados.
Era algo que você esperava para fazer, então?
Sim. Esperava, esperava e nunca chegava. Foi preciso o olhar carinhoso do José Junior e do Erick Bretas (Diretor de Produtos Digitais e Canais Pagos da Globo). Tenho também vontade de fazer dramaturgia ou comédia em inglês e espanhol. É uma maneira de falar com o mundo. Em papiamento (língua que Adnet também é fluente) vai ser mais difícil...
Você faz um executivo de gravadora, em uma época pré digital, em que eles mandavam em tudo, eram influentes...
Sim, um outro mundo. São duas coisas que não existem mais: essa figura de diretor de gravadora e os sequestros como a gente conhecia. Os dois mercados, o musical e o criminal, evoluíram e se transformaram.
Na série, ninguém é apenas mocinho ou vilão. Ela retrata, por exemplo, a violência policial. Juntando isso com as reuniões que você teve com ex-sequestradores, como você, agora, enxerga esses dois lados?
Na equipe também haviam ex-policiais atuando, prestando consultoria e vivendo com esses egressos. Para mim, um cara de fora, do outro lado do muro que divide a sociedade, é algo que causa admiração. Para mim era impensável olhar para um ex-sequestrador. Mas, você senta com os caras e eles são dóceis, carinhosos. Fica uma dúvida: como eu os classifico? Eles são ou foram sequestradores? Será que estou sendo muito permissivo?
Você olha para o lado, tem um policial junto. Aí, você pensa: realmente, não entendi nada. Não há verdades fáceis. Não é só preto e branco. As coisas, às vezes, são cinzas. Isso fica muito claro em todas as relações no Rio de Janeiro. No set, somos todos companheiros de trabalho. Colegas. Trabalhadores do cinema.
Você acredita que essa experiência em A Divisão vai ter ajudar como ator e compositor (Adnet compõe sambas de enredo para escolas de samba)?
Muito, e também como cidadão. A cultura não vem dos salões. Vem dos becos e vielas. O viver da elite não inspira composições ‘sambísticas’. Compus agora um samba para a Unidos da Tijuca, que é a escola que tem ligação com o Borel, sobre as navegações portuguesas. É uma crítica. Tem um trecho que diz “pesa a Vera Cruz na consciência. Quem deve o perdão, que sare a ferida”.
(Os atores) Silvio Guindane e Erom Cordeiro, os protagonistas, já estão bem azeitados em seus personagens. Fale sobre essa experiência de trabalhar com eles.
São dois caras que eu adoro. Fiz o meu primeiro filme com o Silvinho. O Erom eu conheço desde os meus 20 e poucos anos. Como sequestrado, em cena, só convivi com eles surtados. Encontro com eles no ato final, quando o meu personagem está alterado por tudo o que passou. Nesse sentido, minha memória é difusa, tonta. Percebi que são dois policiais (os personagens) diferentes. Um explosivo, para fora, agressivo (o de Guindane) e outro mais contido, sensível, mas não menos problemático (o de Cordeiro). São energias completamente diferentes.
Eles têm a qualidade de uma boa dupla, que é o contraste. São atores sensacionais. O Silvinho é aquele que é capaz de te dar um tapa na cara em cena. O Erom é o cara que te abraça, te dá um olhar de solidariedade.
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