THE NEW YORK TIMES — Os alienígenas que ameaçam a humanidade em O Problema dos 3 Corpos, da Netflix, acreditam em fazer muito com pouco. Mais especificamente, eles conseguem desdobrar um único próton em múltiplas dimensões superiores, o que lhes permite imprimir circuitos de computador tão vastos quanto a superfície do planeta numa partícula menor que um alfinete.
O Problema dos 3 Corpos, audaciosa adaptação de uma trilogia de ficção científica de Liu Cixin, consegue um feito parecido em termos de engenharia e compressão. Sua primeira temporada, que estreou na última quinta-feira, 21, traz as invenções e explicações físicas dos livros para a tela com emoção, esplendor visual e muitos momentos “uau”.
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Se algo a impede de alcançar a grandeza são os personagens, que poderiam ter usado alguma tecnologia alienígena para gerar uma ou duas dimensões extras. Mas a escala da série e as reviravoltas alucinantes vão encher tanto seus olhos que talvez você nem perceba.
David Benioff e D. B. Weiss, aqui em parceria com Alexander Woo (The Terror: Infamy), são mais conhecidos por traduzir a saga ainda incompleta As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R.R. Martin, para Game of Thrones. Quaisquer que sejam as opiniões que você tenha sobre essa série – e todo mundo tem muitas – ela expôs os pontos fortes da dupla como adaptadores e seus pontos fracos como criadores de material original.
Começando com os romances já concluídos de Martin, Benioff e Weiss converteram seus tomos imensos em inebriantes espetáculos televisivos com batalhas épicas e conversas íntimas. Perto do final, trabalhando a partir de contornos bem mais vagos, eles se apressaram e deixaram o espetáculo visual ofuscar personagens até então vívidos.
Mas, em O Problema dos 3 Corpos, eles e Woo têm uma história completa para trabalhar – e ela é incrível. Anuncia sua envergadura desde o início, começando com a execução pública de um cientista chinês durante a Revolução Cultural de Mao, depois saltando para os dias de hoje, quando vemos uma onda de físicos notáveis se suicidando inexplicavelmente.
As mortes talvez tenham a ver com vários fenômenos estranhos. Experimentos com aceleradores de partículas do mundo todo de repente descobrem que as pesquisas realizadas nas últimas décadas estão erradas. Cientistas brilhantes estão recebendo headsets futuristas de origem desconhecida, que os convidam a participar de um jogo de realidade virtual estranhamente realista. Ah, além disso, numa bela noite, todas as estrelas do céu começam a piscar.
Tudo sugere as maquinações de um poder avançado – e não do tipo fofinho do E.T. O que começa como um mistério de detetive, a cargo do desgrenhado investigador de inteligência Clarence Da Shi (Benedict Wong), se transforma numa ameaça de guerra mundial. De início, não se sabe o que os alienígenas querem e o que podem fazer para consegui-lo, mas como Clarence intui: “Geralmente, quando alguém com tecnologia mais avançada encontra alguém com tecnologia mais primitiva, a coisa não vai bem para os primitivos.”
A maior parte do enredo da primeira temporada vem direto da obra de Liu. As maiores mudanças estão na estrutura e na localização da história. A trilogia de Liu, embora abrangente, se concentra sobretudo em personagens chineses e tem conotações históricas e políticas especificamente chinesas. Benioff, Weiss e Woo globalizaram a história, transferindo boa parte da ação para Londres, com um elenco multiétnico. (Os espectadores interessados numa versão mais literal da história de Liu podem assistir à desajeitada, mas minuciosa adaptação chinesa que estreou ano passado no Peacock).
Eles também deram à ciência pesada de Liu uma dose de humanidades. Liu é um romancista brilhante, cheio de ideias especulativas, mas seus personagens às vezes parecem termos de uma equação. Na série, um diálogo lúdico ajuda muito a apresentar todo o curso de introdução à Física.
O elenco também ajuda bastante. Wong dá vida a um detetive durão e meio genérico. Liam Cunningham (Davos Seaworth em Game of Thrones) se destaca como Thomas Wade, um espião de língua afiada, e Rosalind Chao se sai bem como Ye Wenjie, uma astrofísica cuja experiência brutal na Revolução Cultural a faz questionar sua lealdade à humanidade. Zine Tseng também está excelente como a jovem Ye.
Mais curiosa, embora compreensível, é a decisão de embaralhar e reconfigurar personagens de toda a trilogia de Liu num grupo de cinco charmosos prodígios formados em Oxford que carregam boa parte da narrativa: Jin Cheng (Jess Hong), uma física obstinada que tem ligações pessoais com o caso dos cientistas mortos; Auggie Salazar (Eiza González), uma pesquisadora idealista de nanofibras; Saul Durand (Jovan Adepo), um assistente de pesquisa talentoso, mas cansado; Will Downing (Alex Sharp), um professor de natureza doce e apaixonado por Jin; e Jack Rooney (John Bradley de Thrones), um cientista que se tornou empresário e é a principal fonte de alívio cômico.
Os roteiristas conseguem aprofundar as caracterizações unidimensionais de Liu para duas dimensões, mas os “Oxford Five”, com exceção de Jin, não parecem totalmente desenvolvidos. Não é só um detalhe: em séries fantásticas como Thrones ou Lost, são os indivíduos memoráveis – suas Arya Stark e seus Ben Linus – que guiam você pelos altos e baixos da história.
Mas o enredo é vertiginoso, a construção de mundo é imersiva e o orçamento supostamente galáctico parece ter sido gasto com inteligência e criatividade. Veja por exemplo as cenas de realidade virtual, nas quais 3 Corpos vai revelando o que está em jogo e quais são as intenções dos alienígenas. Cada personagem que usa o headset se encontra numa versão extraterrena de um reino antigo – China para Jin, Inglaterra para Jack – que eles são desafiados a salvar de sucessivos desastres causados pela presença de três sóis (daí o título da série).
3 Corpos tem um toque de tecno-otimismo mesmo nos seus momentos mais sombrios: acredita que o universo físico é explicável mesmo quando cruel. Os habitantes desse universo já são um outro problema. Além da corrida para salvar a humanidade vem a questão de saber se vale a pena salvar a humanidade – um grupo de simpatizantes alienígenas, liderado por um ambientalista bilionário (Jonathan Pryce), decide que a Terra poderia se beneficiar de uma boa intervenção cósmica.
Tudo isso liga o espetáculo cerebral da série a grandes ideias humanísticas. A ameaça em 3 Corpos é mais funesta do que iminente – seus alienígenas não são do tipo que aparece de repente e vaporiza a Casa Branca –, o que traça um paralelo com a ameaça mortífera, mas gradual, das mudanças climáticas. Assim como Thrones, com seus Caminhantes Brancos à espreita para além da muralha, 3 Corpos é, pelo menos em parte, um problema de ação coletiva.
E é também uma provocação moral. Os romances de Liu argumentam que, num universo frio e indiferente, a sobrevivência muitas vezes exige que você tenha um coração duro; basear as decisões na consciência pessoal talvez seja uma espécie de egoísmo ou mesmo de loucura. Já a série é um pouco mais sentimental, enfatiza os relacionamentos e a ação individual em detrimento da teoria dos jogos e do determinismo. Mas está disposta a ficar bem tenebrosa: em um episódio marcante no meio da temporada, os heróis tomam uma decisão moralmente questionável em nome da segurança planetária, e as consequências são retratadas em detalhes horríveis.
Quem chegou agora à história vai achá-la emocionante por si só. (Você não precisa ter lido os livros, ninguém nunca deveria precisar ler os livros para assistir a uma série de TV). Mas a trilogia literária vai para uns lugares estranhos, sombrios – e presumivelmente difíceis de filmar. Vai ser interessante ver se e como as temporadas futuras vão se desenrolar.
Por enquanto, há talento, ambição e reviravoltas galáticas de sobra. Claro, é difícil contar esse tipo de história do começo ao fim (veja o caso de Game of Thrones, de novo). Mas qual é a graça de criar um universo em franca expansão se não há risco de colapso? / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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