O interesse por documentários, reportagens e séries que abordam crimes reais não é uma novidade, mas se tornou um fenômeno que não para de crescer nos últimos tempos. Chamado de true crime, o gênero acabou se consagrando como ótimo negócio para realizadores e se espalham por todos os serviços de streaming.
Isabella: O caso Nardoni, da Netflix, estreou há duas semanas no catálogo, mas acumulou 9,3 milhões de horas vistas apenas na semana passada. Com base em dados do período, o filme figura em primeiro lugar entre os longas de língua não-inglesa mais vistos da plataforma há duas semanas.
Outro sucesso recente do true crime foi Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez, da HBO Max, que estreou no ano passado. Apenas um mês após a estreia da série, ela já se tornou a produção original mais assistida do serviço de streaming no Brasil.
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Em comum, os documentários baseados nos assassinatos de Isabella Nardoni e Daniella Perez exploram crimes que geraram ampla comoção nacional. E é exatamente essa a fórmula do sucesso do gênero: o público e a publicidade estão prontos antes mesmo das gravações, como explica o professor Noel Carvalho, do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (IA - Unicamp).
A maior dificuldade no cinema é encontrar um público. [...] Nos casos das histórias de crimes famosos, o público e a publicidade já estão prontos. É um negócio com pouco risco.”
Noel Carvalho
O que interessa nesses casos, segundo o professor, não é o crime em si, mas “a sua irradiação e popularização pelos veículos”. “Os filmes reatualizam essa espetacularização, como se fosse um ‘bis’ para um público que já sabe o que verá”, comenta.
Com o lançamento de Isabella: O Caso Nardoni, porém, um novo elemento do gênero foi discutido: produções de true crime precisam, necessariamente, trazer novidades sobre o caso? Com os réus já julgados, o longa da Netflix trouxe apenas novas discussões sobre o tratamento do crime pela mídia e a vida de Anna Carolina Jatobá, condenada a mais de 26 anos de prisão pela morte de Isabella.
Mas, afinal, o true crime precisa mesmo ter essa carga informativa ou serve apenas como um gênero de “entretenimento”? E quais os limites éticos do interesse por crimes reais?
Nesta matéria, você vai entender:
- Como o true crime fideliza o público?
- Por que nos interessamos por crimes que aconteceram?
- É ético dramatizar histórias reais?
- Com a “humanização” de mulheres que cometeram crimes, o gênero vive nova fase?
- Qual o limite do interesse por true crime?
A ‘fórmula’ do true crime
Para o pesquisador André Vilela Komatsu, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV - USP), o true crime une três elementos que acabam por fidelizar o público: a curiosidade por casos extraordinários, a tendência em buscar explicações e a amplificação do caso na mídia.
Vão ter pessoas que estão em busca apenas de entretenimento e outras que se envolvem mais, tentando entender o funcionamento psicológico de pessoas que cometeram atos cruéis, ou em busca de justiça.”
André Vilela Komatsu
Segundo Noel, essa exploração anterior da mídia de crimes reais é o tema mais abordado por documentários recentes. Ele ressalta que a maioria das produções aborda a espetacularização produzida pela mídia para recontar as histórias. “Não é o crime em si o que interessa, mas a sua irradiação e popularização pelos veículos”, afirma.
Os problemas que acompanham produções de true crime, conforme André, estão diretamente relacionados a uma busca por entretenimento. O pesquisador considera que esse foco em despertar interesse pode gerar “pouco compromisso com a veracidade ou precisão das informações”.
Noel, porém, explica que o “espetáculo” produzido anteriormente pela mídia é apenas refletido em documentários sobre crimes reais. Produções não têm o propósito principal de informar, mas de “reatualizar a espetacularização”, como o professor apontou anteriormente. “A informação existe, mas está ali a serviço de dar substância para o que realmente interessa, que é o espetáculo”, diz.
Interesse por crimes reais tem a ver com sentimentos instintivos
O interesse por casos reais tem a ver com um sentimento instintivo, conforme a revista científica da BBC, a ScienceFocus. Esse conceito, defendido por psicólogos evolucionistas, diz que histórias sobre assassinatos e crimes graves acompanha a história humana desde o primórdio, nos tempos em que éramos caçadores-coletores.
Por esse motivo, segundo a revista, é instintiva a obsessão por querer descobrir o ‘quem’, ‘o quê', ‘quando’ e ‘onde’. Há uma necessidade humana em descobrir o motivo por trás de pessoas que cometeram crimes como assassinatos e, assim, buscar proteção.
Mais do que isso: um estudo feito por pesquisadores da Universidade de Illinois mostrou que mulheres possuem mais interesse por produções de true crime do que homens, principalmente quando vítimas são do sexo feminino. Além dos motivos citados acima, a pesquisa apontou que esse fator está diretamente ligado a uma busca por técnicas de defesa.
Há problema em dramatizar crimes reais?
O cuidado com a ética precisa ser redobrado ao produzir documentários do gênero. O professor afirma que o true crime pode ser antiético a depender do tratamento das pessoas envolvidas. Espetacularizar, animalizar e desumanizar essas pessoas, para ele, significa não apenas desrespeito com envolvidos, mas também com o público, “fidelizado pelo lado emocional”.
André explica que o tratamento respeitoso não envolve apenas vítimas ou familiares: também cabe aos autores dos crimes. Seguir esse princípio ético ajuda a evitar a banalização da violência e permite explorar questões sociais mais amplas, como sistema jurídico, desigualdade e problemas de saúde mental.
Nesse sentido, para Noel, o recurso de dramatizar os casos através das produções, como no caso da volta do Linha Direta na TV Globo, pode não ser, necessariamente, um problema - desde que isso seja feito com “qualidade e complexidade”. Reportagens de televisão costumam usar o mesmo recurso, mas para gerar “indignação moral”.
“Se os documentários fazem isso, então eles têm problemas éticos graves porque, diferentemente das reportagens da televisão, o documentário tem tempo e distância para elaborar uma representação muito mais apurada e isenta”, considera o professor.
Outro problema a ser considerado, segundo André, é quando é feita a escolha por misturar ficção com fatos reais – algo que não ocorre em todos os documentários, mas pode ser utilizado de forma comum.
Se a obra se propõe a apresentar um caso real, em que grau esses elementos adicionais fazem com que essa nova história produzida se distancie dos fatos verdadeiros? [...] O público que assiste pode tomar tudo o que está sendo contado como verdade absoluta
André Vilela Komatsu
Produções acertam ao ‘humanizar vilões’, especialmente mulheres
Apesar de não trazer grandes atualizações sobre o caso em si, Isabella: O Caso Nardoni chama a atenção ao trazer uma discussão inédita: o estereótipo entregue pela televisão a Anna Carolina Jatobá, madrasta de Isabella.
Tratada anteriormente como uma mulher “arrogante e fria” – defeitos comumente associados a madrastas –, o longa procura se afastar de uma visão machista e humanizar Anna Carolina, como aponta Noel. “O documentário mostra uma mulher acuada por um homem machista e violento. Ela sofre de depressão pós-parto e vive sob a tutela do sogro”, relata.
Ele também chama a atenção para o que foi feito na série documental Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime, também da Netflix. A produção trouxe entrevistas com Elize, condenada por ter assassinado e esquartejado o marido, Marcos Matsunaga, o que gerou debates e tratou a “vilã” do caso de forma complexa.
Vista com o estereótipo de, nas definições do professor, “mulher fria, loira e cruel”, o documentário mostrou abusos que Elize sofria desde a infância. “Esses dois filmes exploram crimes violentos famosos, mas vão além da TV mal feita. São interessantes na medida que colocam os crimes, mas não animalizam os seus praticantes. Nem exploram a moralidade e os instintos baixos dos espectadores”, avalia.
Uso da IA em crimes reais nas redes se afasta do true crime e vai em direção à ‘morbidez pura e simples’
Um território obscuro envolvido com o interesse por crimes reais ganha força nas redes sociais, especialmente no TikTok, com o uso da inteligência artificial. Hoje, crescem perfis que usam a tecnologia para criar deepfakes, técnica que copia rostos e vozes para gerar desinformação, e fazer com que vítimas contem (falsamente) seus próprios casos.
Para Noel, as postagens se afastam do que é produzido com o true crime – com edição, informação e apuração – para se aproximar de uma “morbidez pura e simples”. “A edição, o apuro e a organização da narrativa é o que diferencia os filmes de crimes e a simples imagem de corpos ou as narrativas violentas em si”, ressalta.
André diz que a prática gera uma “revitimização” de familiares e vítimas. O “sucesso” desse tipo de conteúdo, segundo ele, pode ser explicado “em função do interesse intrínseco que gira em torno do tema ‘morte’”. Mas, afinal, por que o tema gera tanta repulsa, mas, ao mesmo tempo, tanto interesse?
Conforme o pesquisador, o “fascínio” pela morte é diretamente relacionado à “impossibilidade de resolver o seu mistério”. “As pessoas buscam explicações, criam histórias, atribuem significado, mas é certo que ninguém pode provar o que vem depois”, diz.
Essa complexidade tem implicações filosóficas, espirituais e existenciais que faz com que esse tema continue a desencadear engajamento das pessoas em diferentes espaços, incluindo as redes sociais.”
André Vilela Komatsu
*Estagiária sob supervisão de Charlise de Morais
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