Por que gostamos de rever filmes e séries?

O ‘Estadão ouviu especialistas. A resposta vai muito além do simples de darmos preferência por determinado conteúdo

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Foto do author Danilo Casaletti

“Alguém pode me indicar um filme ou uma série para assistir?”. O pedido de ajuda em busca de conteúdo é algo muito comum nas redes sociais ou entre amigos. Diante de inúmeras produções audiovisuais hospedadas em diferentes plataformas de streaming, com estreias semanais, nem sempre é fácil escolher em qual dar o play.

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Há quem não passe por esse sofrimento. Na dúvida, recorre logo a algo que já assistiu anteriormente. Mas, o que esse comportamento indica, além do fato de simplesmente ter gostado daquele conteúdo - a resposta mais óbvia nestes casos? O Estadão ouviu especialistas e foi atrás de espectadores que têm esse ‘vício’ em rever.

O ator Giovani Tozi, 37 anos, é assim. Do filme O Crepúsculo dos Deuses, produção de 1950, ele decorou as falas de depois de assisti-lo por 12 vezes. “É como um quadro em um museu que você pode voltar e apreciá-lo sempre”, explica.

“No primeiro olhar você não consegue dar conta de tudo. Eu vejo, revejo e, depois de um tempo, assisto novamente. Para minha profissão sempre tem algo que possa me servir”, prossegue Tozi, que se prepara para estrear a peça Quarto Minguante - Uma História de Pai Para Filho, ao lado de Anderson Müller.

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Com seis temporadas, a série britânica Downton Abbey (2010/2015) prendeu a atenção de Tozi em episódios específicos, sobretudo nos quais a atriz Maggie Smith ganha destaque. Neles, ele volta para se divertir com as cenas protagonizadas pela veterana atriz.

O ator Giovani Tozi na sala do seu apartamento onde costuma ver séries e filmes Foto: Taba Benedicto/Estadão

Para o psiquiatra Daniel Martins de Barros, colunista de saúde do Estadão, uma explicação para esse comportamento é não estar disposto a lidar com a escolha ou, pelo menos, poder simplificá-la ao máximo. O retorno a uma emoção positiva, ou seja, assistir novamente aquilo que lhe foi prazeroso, está diretamente atrelada a esse pensamento.

“Hoje em dia, o preço de uma escolha é muito alto. É o que chamamos de custo de oportunidade. Ou seja, eu abro mão de uma coisa para fazer outra. “Diante dessa múltipla oferta do streaming, isso pode ser uma ‘garantia’, ou seja, a pessoa opta por aquilo que será bom para ela, o que lhe garantirá emoções positivas”, explica.

SEGURANÇA. A artista visual Luiza Yonamine Paiva, de 34 anos, busca justamente o conforto ao rever episódios das séries japonesas Midnight Dinner e Makanai (ambas produções atuais da Netflix). “Elas têm têm uma coisa em comum que me agrada e me acalma muito. O áudio e as imagens possuem um ritmo mais lento, menos esquizofrênico/frenético do que outras”, explica.

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Luiza, que atualmente mora em Portugal, ainda tem outros propósitos ao rever determinados conteúdos, inclusive de outras décadas. Ela gosta de observar referências da moda e do cotidiano.

“Geralmente (os motivos) são o figurino e a fotografia porque, de alguma forma, são inspiradores”, diz. Ela cita dois exemplos de produções as quais ela sempre revisita. Uma é a série Alf, o ETeimoso, produzida pela NBC entre os anos de 1986 e 1990, atualmente disponível no catálogo da HBOMax. Outra é o filme Memórias de Uma Gueixa, de 2005.

As motivações para voltar a uma série ou filme são, de fato, diversas e subjetivas. Como ocorre na maioria das questões ligadas ao comportamento humano, não há um traço mais relevante e em comum entre esse tipo de assistente, conforme explica Márcio Moreira Borges, doutor em Ciências do Comportamento, professor do curso de Psicologia do Centro de Ensino Unificado de Brasília (CEUB).

“Para uma determinada pessoa, uma série ou filme pode estar associada a alguma memória emocional, à lembrança de uma fase feliz da vida. Para outra pessoa, a previsibilidade dos eventos do filme já assistido pode trazer uma sensação de conforto e relaxamento. Por outro lado, uma pessoa pode assistir a conteúdos repetidas vezes simplesmente porque foi criada em uma família com esse hábito”, explica Borges.

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O mesmo filme visto com outros olhos

Na família Navarro, o costume de voltar a filmes e séries tem a ver exatamente com a criação. A matriarca, a professora de música Vida Olga, 66 anos, gosta dos filmes chamados de “clássicos”. As sequências de Tubarão, Indiana Jones, Harry Potter e O Poderoso Chefão ela assiste quantas vezes os canais a cabo reprisarem - e eles fazem muito isso.

“Gosto de ver detalhes das cenas”, aponta um dos motivos, junto com a emoção de ver e rever a atuação de atores como Marlon Brando e Al Pacino. O fator emocional também conta. Ela assistiu O Poderoso Chefão pela primeira vez acompanhada pelo pai.

A professora de música Vida Olga Navarro, 65 anos, os filhos Vivian Navarro, 32 anos e Rafael Navarro, 32 anos. Cada um tem sua reprise preferida Foto: Taba Beneidcto/Estadão

Dedicada aos trabalhos manuais, Vida também aproveita para prestar atenção a trechos que possa ter deixado escapar entre um ponto e outro do bordado durante a exibição do filme.

A professora conta que os filhos gêmeos, Vivian e Rafael, assistiam quase que diariamente, quando eram crianças, ao filme A Noviça Rebelde, em companhia da avó.

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Agora, aos 32 anos, a assistente jurídica Vivian diz que seu longa de estimação é Mamma Mia!. “Perdi a conta de quantas vezes já assisti”, diz. " São obras tão boas, mas tão boas, que ver só uma vez é muito pouco! São dignas de repetição”, completa.

Mamma Mia!, derivado no musical homônimo baseado nas músicas do grupo ABBA, também oferece segurança a Vivian. Ela sabe que na produção encontrará alegria, diversão, leveza e canções das quais gosta.

Conteúdos novos, para ela, podem por vezes despertar emoções não tão agradáveis. “Filmes que na primeira vez que vi, por entrar muito de cabeça na trama, e não saber o que aconteceria, eu fiquei tensa demais, nervosa, agoniada”, exemplifica. Vivian tenta acomodar essas reações justamente assistindo ao conteúdo por uma segunda vez.

Para Borges, o raciocínio de Vivian está correto. “Se eu assisti a um filme ontem à noite e o assisto novamente hoje, coisas que aconteceram durante o meu dia podem fazer com que a experiência de assistir ao filme hoje seja bem diferente da experiência de ontem”, afirma.

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Querer sempre o mesmo conteúdo pode ser um comportamento infantil?

Não seria o hábito de assistir sempre a mesma coisa um hábito um tanto quanto infantil - quem já não teve que repetir o mesmo desenho ou filme a pedido de uma criança?

“Talvez em um ou outro caso muito específico isso possa ocorrer, mas eu diria que, no geral, essa relação direta não pode ser estabelecida”, diz Borges.

Daniel Martins de Barros vai na mesma linha de pensamento. “Não vejo essa relação com a infância, com algo infantilizado. A relação é mesmo com o prazer”, diz.

Acessar sentimentos de segurança e conforto por meio do hábito de rever um conteúdo não tem nada errado. A dica dos especialistas, para não cair no exagero, é simples e objetiva: concilie a maratona de repetecos com a sensação de assistir a uma série ou filme pela primeira vez.

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