Como diz o título, a série da Netflix Monstros - Irmãos Menendez: Assassinos dos Pais aborda o crime ocorrido em Beverly Hills em1989 e julgado em 1993, em meio a intensa mobilização da opinião pública norte-americana.
O enredo gira em torno da questão maior – por que Lyle e Erik mataram os pais José e Mary Louise Menendez? Enquanto alguns pensam que os irmãos foram regidos pelo desejo de se apossar da herança, eles mesmos alegam terem sido vítima de abusos físicos, emocionais e sexuais. Ao ameaçarem tornar pública a violência física e os estupros infligidos pelo pai, com a cumplicidade da mãe, temeram que o casal os assassinasse.
Leia também
Não nos deteremos na veracidade ou falsidade dessas acusações, às quais Lyle e Erik permanecem fiéis até hoje. Veremos alguns aspectos mais amplos, que transcendem o crime em si e apontam para impasses maiores de nossa cultura.
Vemos na série uma espécie de debate entre os personagens que representam o escritor e jornalista Dominick Dunne e a advogada de defesa Leslie Abramson sobre a gênese do crime. Enquanto Dunne, que poucos anos antes tivera a filha assassinada pelo namorado, pensa que o crime é a expressão do “mal”, algo intrínseco e inexplicável, Leslie Abramson acredita que são as circunstâncias da vida do criminoso que o levam àquela posição extremada e sem saída.
A origem do mal na humanidade é uma questão existencial e filosófica da maior importância. Conhecemos a resposta milenar das religiões, bem como as hipóteses mais recentes da psicanálise, temas extensos sobre os quais não posso me deter. Assim, levando isso em conta, podemos perguntar - quem são os “monstros” nessa história - os irmãos Menendez, seus pais, a sociedade?
O problema fica ainda mais complexo quando se leva em conta a história transgeracional, ou seja, os traumas vividos numa família, que, mesmo mantidos como segredos, são transmitidos de forma inconsciente para as gerações subsequentes. Os abusos sexuais que José Menendez teria infligido aos filhos tem ocorrências semelhantes em gerações anteriores de sua família. Algo semelhante se dera com Mary Louise Menendez em sua infância.
Gerações de molestados passando adiante a “moléstia” dos abusos. Abusados que se transformam em abusadores. Embora essa compulsão à repetição seja a estrutura exposta na série, ela não ocorre necessariamente assim, mecânica e automaticamente. De qualquer forma, atribuir a algum elo da cadeia transgeracional a condição de “monstro” fica bastante dificultado.
Além dos abusos sexuais, somos informados das insatisfações da mãe, que dizia odiar os filhos, “parasitas que a comiam por dentro” e que a impediram de ser “uma nova Kim Novak” ou uma “Miss” qualquer.
Por outro lado, como diz o advogado de acusação, a lei não está interessada nas motivações secretas do crime, mas em sua efetiva concretização, que, como tal, deve ser punida. Na opinião dele, por pior que tenham sido os abusos sofridos por alguém, a verdade é que todos nós, de uma maneira ou de outra, sofremos abusos no passado por nossos pais, pela realidade, pela vida, e nem por isso estamos autorizados a praticar vendetas sanguinolentas.
Além dos traumas advindos dos abusos, vemos aqueles decorrentes da imigração. O pai José imigrara de Cuba aos 16 anos para os Estados Unidos e iniciara seu longo percurso como um humilde lavador de pratos até atingir o ambicionado posto de rico executivo na área de entretenimento. Espelhando-se na imagem da família Kennedy, sonhava em ser senador e imaginava que os filhos seriam candidatos à presidência da república.
Tendo isso em mira, exercia uma pressão extraordinária sobre os filhos - Lyle devia brilhar em Princeton e Erik nos esportes, como tenista. Controlando minuciosamente a vida dos filhos, projetava neles seus desejos não realizados de imigrante pobre e não tolerou o fracasso de seus projetos megalomaníacos.
José procurava transmitir aos filhos a ética que o guiava. “Minta, roube, engane (pois todos agem assim), o único pecado é se deixar apanhar”. Lyle e Erik são punidos e humilhados publicamente não pelos maus feitos, mas por terem sido pegos em flagrante. A moral cínica do pai reflete a corrupção social generalizada, a começar com a da idealizada Princeton, onde o pai confronta o diretor da faculdade e impõe que ele seja leniente com o filho, pois doou milhões para a universidade. Da mesma forma antiética e corrupta age o primeiro psicoterapeuta da família.
Finalmente o seriado aponta ainda duas importantes questões: o acesso fácil às armas e a fragilidade do aparato legal. Os tribunais do júri transformados em espetáculo para o público e para a mídia. Advogados de defesa e acusação procuram convencer o júri usando todas as artimanhas possíveis, manipulando-o afetivamente. O que importa é ganhar a disputa, tudo muito distante da procura da verdade em torno do crime e o estabelecimento de uma punição adequada, que deveria ser o único objetivo do julgamento.
Atualmente, a manipulação do júri e do público usa de temas susceptíveis, como abuso sexual e racismo, que, por seu teor emocional de alta voltagem, aumentam a irracionalidade do processo, invertendo seu andamento adequado.
O apelo ao abuso sexual na infância, que teria libertado o assassino da filha de Dunn, é o trunfo usado por Leslie Abramson para defender os irmãos Menendez. Em seu ultimo diálogo com Abramson, Dunn pergunta - o que é mais monstruoso e assustador, reconhecer que os relatos de abuso sexual detalhados por Erik sejam verídicos ou pensar que ele tenha forjado tais crimes instruído pela advogada como forma de sensibilizar o júri?
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.