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Séries e filmes sobre crimes influenciam policiais e bandidos? Especialistas analisam

Quais são as séries de investigação policial que promotores e juízes assistem e o que elas podem ensinar? O ‘Estadão’ conversou com profissionais para entender o impacto desse tipo de produção no cotidiano de policiais, investigadores, promotores, advogados e juízes

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Foto do author Flávio Pinto
Atualização:

Por mais que alguns discordem, o crime pode, sim, compensar. Pelo menos é o que a lista de produções mais assistidas da Netflix, Max e outras plataformas de streaming sugerem.

Liz Danvers (a vencedora de dois Oscars Jodie Foster) e Evangeline Navarro (a boxeadora e atriz Kali Reis), protagonistas da nova temporada de 'True Detective'. Foto: HBO Max/Divulgação

O sucesso de séries como True Detective, Bom Dia, Verônica, DNA do Crime e outras, no entanto, não é mera coincidência. Segundo a crítica de televisão Kathryn VanArendonk, elas cativam o público por proporcionar a “oportunidade de imaginar uma realidade alternativa na qual podemos desafiar a ordem social e correr desenfreados pelas ruas”.

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Mas, apesar de populares e aclamadas, séries e filmes criminais retratam com fidelidade o trabalho do dia a dia de policiais, promotores, juízes e advogados?

Antônio Silvério Neto, advogado criminalista, diz ao Estadão que “em qualquer trama de ficção há uma distorção da realidade, até mesmo para cumprir a função de transmitir ao público um enredo instigante em paralelo à atividade profissional das personagens”.

Cena da série 'CSI' Foto: Divulgação/Paramount

Segundo Silvério Neto, esse exagero é necessário para cumprir a função de transmitir ao público uma história impactante. “A realidade do sistema de justiça criminal, especialmente no Brasil, é muito diferente da representação oferecida pela indústria cinematográfica norte-americana.”

Os desafios vivenciados pelos profissionais na vida real são sensivelmente mais dramáticos, envolvendo, muitas vezes, pressões políticas institucionais, carência de recursos humanos e materiais, deficiências na formação dos profissionais e aparelhamento das instituições policiais

Antônio Silvério Neto

Essa mesma realidade distorcida também é enxergada por Paulo Furtado, delegado de polícia e gestor da Diretoria de Repressão à Corrupção e ao Crime Organizado (DRACCO) de Pernambuco. “É fácil de perceber especialmente em relação ao que ocorre na realidade policial, por exemplo”.

No entanto, apesar dos artifícios aplicados por roteiristas e diretores, Furtado diz que existe um toque de verdade naquilo que assistimos pela televisão. “Em alguns pontos, as séries conseguem ter a sensibilidade para trazer à baila o que nós vivemos no dia a dia policial, como as dificuldades do esquema de corrupção que envolve os órgãos públicos.”

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Além disso, as legislações e os métodos de atuação dos policiais diferem de país para país. A advogada criminalista Carolina Fichmann explica que, considerando que a maioria das séries produzidas é estrangeira, nem sempre tudo se aplica ao direito brasileiro, e vice-versa.

“Existem países, como a França, em que os advogados não têm acesso à íntegra de inquéritos policiais. Por outro lado, aqui, com advogado constituído, temos até súmula que nos garante pleno acesso.”

Quando as séries de investigação podem ajudar os funcionários do Sistema Judiciário?

Para aumentar a credibilidade de produções como CSI ou DNA do Crime, é comum recorrer a um consultor jurídico. Este profissional auxilia na montagem do cenário, no roteiro e até mesmo no figurino, garantindo maior veracidade às cenas de crime, às delegacias e aos tribunais. Isso ajuda a traduzir com mais fidelidade o que acontece nas operações dos órgãos responsáveis.

Rômulo Braga como Benício, Maeve Jinkins como Suellen em 'DNA do Crime' Foto: Guilherme Leporace e Alisson Louback/Netflix

Esse é o trabalho de Bruna Assef, advogada e consultora da novela brasileira Beleza Fatal, da Max. Apesar de fã do gênero e atuar tanto nos bastidores de produções deste tipo quanto com o sistema de Justiça brasileira, ela garante que séries policiais fogem da realidade com frequência.

“Isso acontece porque elas costumam retratar soluções mirabolantes, com atos realizados por personagens principais beirando a irresponsabilidade, irregularidade ou até mesmo ilegalidade, como se fossem justificáveis para se chegar ao culpado.”

Mesmo com suas ressalvas em relação ao que é retratado, Assef diz que, para o seu dia a dia, assistir a produções como True Detective ou The Night Of a ajuda a encontrar argumentos diferentes e soluções criativas para os casos que cuida.

O consumo de séries de investigação por pessoas que trabalham no sistema de Justiça pode ajudar quando realizado com um olhar crítico. Elas oferecem assistência na hora de apontar alguns erros comuns na condução de um caso criminal que podem ser evitados em casos reais.

Bruna Assef

Essa análise é respaldada por Richard Gantus Encinas, coordenador do Cybergaeco (Núcleo de Investigações de Crimes Cibernéticos) do Ministério Público de São Paulo. Ele encoraja outros promotores a assistirem a essas produções – especialmente aquelas baseadas em casos reais. “Muitas diligências apresentadas em séries de televisão podem ser adaptadas e aplicadas na prática diária”, ele disse.

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2024. Tainá Müller, Rodrigo Santoro, Maitê Proença, Reynaldo Gianecchini, Klara Castanho e grande elenco fecham última temporada de 'Bom dia, Verônica', na Netflix. Foto: Divulgação/Netflix

Aliás, Encinas já tirou uma lição ou outra de produções como CSI: Cyber e O Poder e a Lei. “Em 2004, quando era delegado de polícia especializado em apuração de homicídios, realizei a comparação de um pedaço de fita adesiva utilizada para imobilizar uma vítima com um rolo apreendido na casa do suspeito.”

“Havia visto na ficção um exame que determinou que o pedaço de fita era proveniente do rolo apreendido. Decidi realizar essa perícia e deu certo. Consegui provar que a fita era proveniente do rolo apreendido com o suspeito”, acrescenta o promotor.

Segundo Matheus Falivene, doutor e mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), a ficção também foi responsável pelo desenvolvimento das Ciências Forenses e da investigação criminal. Ele usa como exemplo a série Law & Order. “Essas séries, de certa forma, influenciaram muitas pessoas a se tornarem peritas criminais, algo que, com o tempo, melhorou a qualidade das perícias em geral.”

Entre a liberdade da ficção e as leis reais

Dizem que a ficção imita a realidade, mas às vezes pequenos eventos do cotidiano podem ser inspirados por cenas e fragmentos do que é assistido. Existem crimes que ganharam destaque nas páginas policiais dos jornais justamente por terem sido influenciados por séries e filmes.

Imagem da série 'Mindhunter', da Netflix, com Jonathan Groff Foto: Divulgação/Netflix

O juiz José Eugênio do Amaral, por exemplo, afirma ao Estadão que já julgou um caso de feminicídio e estupro em que o autor do delito se inspirou no filme norte-americano Doce Vingança para cometer os crimes. Porém, por ser um processo sob segredo de Justiça, o magistrado não pôde revelar mais informações sobre o episódio.

Lembro-me de quando trabalhava na promotoria, tivemos um caso em que a vítima foi assassinada com cloreto de potássio, o qual, até então, diziam ser muito difícil de detectar em exames. Só havia visto isso em séries.

Carolina Fichmann

Para Antônio Silvério Neto, tudo também é possível quando se trata de um povo criativo como o brasileiro. Ele menciona o assalto ao Banco Central em Fortaleza e, mais recentemente, a fuga de dois internos da Penitenciária Federal em Mossoró, no Rio Grande do Norte, como exemplos de casos criminais com enredos verdadeiramente cinematográficos.

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“Claro que não podemos afirmar – pelo menos, ainda – influência direta de produções audiovisuais, mas sem dúvida toda empreitada, para o bem ou para o mal, começa com uma ideia, uma inspiração”, analisa o advogado criminalista.

Não se pode ignorar que, muitas vezes, a arte nos sugere caminhos valiosos e que podem ser aplicados na vida e na profissão. Isso pode acontecer com qualquer pessoa, em qualquer profissão.

Antônio Silvério Neto

Essa conduta é explicada por um conceito da Criminologia conhecido como “teoria da imitação”, que estuda o fenômeno da repetição do comportamento criminoso. Desenvolvido pelo criminologista francês Gabriel Tarde no século 19, esse conceito sustenta que o comportamento criminoso é aprendido por meio da imitação.

Em 2005, assaltantes furtaram do Banco Central 165 milhões de reais, ou cerca de 3 toneladas e meia de cédulas de 50 reais usadas e não rastreáveis. Foto: Netflix/Divulgação

“Essa teoria evolui depois para a chamada teoria da associação diferencial, na Escola de Chicago no século 20, segundo a qual a pessoa aprende a conduta desviante e se associa voluntariamente a ela. E esse aprendizado pode se dar também por séries, livros ou filmes”, esclarece Matheus Falivene.

Para Bruna Assef, a realidade costuma ser mais complexa do que a ficção. “Os crimes mais comuns no Brasil são reflexo de questões sociais, culturais e econômicas do País. Mas um plano bem elaborado retratado em um episódio de série pode influenciar ideias para alguém que esteja pensando em cometer um delito”, diz.

Apesar dessas escolhas serem razoáveis para serem retratadas na ficção, não podem servir de base. A ficção não tem regras, a realidade tem regras e leis sérias para serem seguidas

Bruna Assef

Ao Estadão, um delegado do Rio Grande do Norte que não quis se identificar, aponta que, no geral, o mais preocupante dessa inspiração é a capacidade dos jovens vulneráveis de distinguir entre o que é real e o que não é ao assistir produções que romantizam o crime.

“Essas narrativas retratam os delitos como uma janela repleta de facilidades, dinheiro e uma vida boa. Na verdade, a realidade é muito diferente, marcada por tragédias, prisões, dores e perdas”, ele comenta.

O que os especialistas maratonam?

Conheça quais são os filmes e séries de investigação policial favoritos dos profissionais entrevistados pelo Estadão

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Wagner Moura interpreta o traficante Pablo Escobar na série 'Narcos' Foto: Divulgação/Netflix
  • Bruna Assef, advogada criminalista e consultoria jurídica para produções audiovisuais: True Detective (Max), A Escuta (Max), Sherlock (Max), The Night Of (Max), Trapped (Netflix), Mindhunter (Netflix) e Slow Horses (Apple Tv)
  • Antônio Silvério Neto, advogado criminalista: True Detective (Max), Suits (Netflix) e Bosch (Prime Video)
  • Richard Gantus Encinas, promotor do Ministério de Justiça de São Paulo e coordenador do Cybergaeco (Núcleo de Investigações de Crimes Cibernéticos): NCIS (Paramount+), Narcos (Netflix), O Poder e a Lei (Netflix), Suits (Netflix), C.S.I.: Cyber (Prime Video), El Chapo (Netflix) e Griselda (Netflix)
  • Carol Fichmann, advogada criminalista: Law & Order (Globoplay)
  • Matheus Falivene, doutor e mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo: Investigação Criminal (Prime Video) e Suits (Netflix)
  • Paulo Furtado, delegado de polícia e gestor da Diretoria de Repressão à Corrupção e ao Crime Organizado (DRACCO) de Pernambuco: O DNA do Crime (Netflix)
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