Publicado nos EUA de 2009 a 2013, o gibi Sweet Tooth, que transformou o desenhista e escritor canadense Jeff Lemire numa grife de excelência pop, vai ganhar uma série da Netflix a partir de 4 de junho, mergulhando o streaming numa lógica em que natureza e civilização hão de trombar pelas vias da fantasia. E também da solidariedade.
Essa é a palavra central da adaptação em forma de série da HQ, cuja releitura audiovisual foi delineada pela produtora Susan Downey (de Valente e Sherlock Holmes) e seu marido, o ator Robert Downey Jr., como parábola de esperança. No enredo, narrado por James Brolin, há uma praga – nas revistinhas, é O Flagelo; no seriado, o termo é O Grande Esfacelamento. Ela assolou a humanidade, deixando como sequela uma mudança genética em bebês nascidos após a hecatombe, gerando criaturas com feições híbridas de animais e de gente.
Como no quadrinho – editado pela DC Comics em 40 edições publicadas por aqui na década passada, em encadernados da Panini Comics, que relança agora as tramas em uma edição de luxo –, os episódios, estruturados sob a direção-geral de Jim Mickle (do cult Julho Sangrento), seguem os passos do menino-alce Gus. Interpretado (num tocante desempenho) pelo ator mirim Christian Convery, Gus e seu protetor, o grandalhão Jepperd (Nonso Anozie), cruzam os Estados Unidos tentando entender o que sobrou do mundo, rastrear o que restou de bom nas pessoas sobreviventes e encontrar um lugar seguro... onde exista afeto.
“Nessa alegoria, que pode ser entendida como uma fábula, Jeff Lemire nos dá um material rico que exigia uma perspectiva capaz de dar conta de sua excelência, e Jim encontrou o caminho ao propor que explorássemos a cabeça dos personagens, avançando internamente na jornada entre Jepperd e Gus”, diz Susan ao Estadão. Ela ressalta a dimensão ecológica do projeto, que Downey Jr. ajudou a produzir sem aparecer diante das câmeras: “Robert e eu sempre adoramos animais, um tema importante entre muitos outros que aparecem aqui, no universo de Jeff, do qual Jim já era fã antes de começarmos a série. Nosso desafio era levar essas questões para um público amplo”.
Alternando situações sombrias – por vezes assustadoras – com momentos de lirismo, Sweet Tooth se desenha na tela como uma aventura, tendo como eixo a amizade entre Gus e Jepperd. Mesmo sem Jepperd entender como o garoto nasceu com a fisionomia de um cervo nem compreender as habilidades especiais que ele possui.
“Estamos em uma realidade sem lei, na qual o simples gesto de compartilhar uma comida com o próximo pode ser considerado uma atitude heroica”, diz Anozie, ator inglês de ancestrais nigerianos, conhecido pela série Game of Thrones, que, do alto de seu 1,98 m de altura, torna Jepperd uma figura intimidadora frente aos inimigos que os cercam. “Lealdade é algo que pode inspirar mudanças. E existe algo de leal entre eles. Esta é uma história que nos ensina a respeitar melhor o meio ambiente. E, por mais que pareça coincidir com o que enfrentamos hoje diante da covid-19, essa história surgiu antes, já falando da importância de respeitarmos o que temos diante de nós.”
Descrito entre fãs de quadrinhos como uma mistura de Bambi com Mad Max, Sweet Tooth traz uma realidade apocalíptica que começou uma década antes de Gus nascer, com os estragos inerentes ao Grande Esfacelamento, no qual um vírus passou a surtir mutações nos recém-nascidos. Sem saber se os híbridos são a causa ou o resultado da doença, muitos humanos os temem e caçam a criançada geneticamente alterada. Após uma década vivendo com segurança em uma casa isolada na floresta, Gus se vê forçado a sair mata adentro, atrás de um refúgio, tendo em Jepperd sua única segurança.
Mas as mutações que ocorreram no espírito humano podem ter sido mais perigosas do que qualquer mudança na forma das novíssimas gerações. “O vírus mostrou algo assustador no mundo, mas Gus consegue adentrar no coração de Jepperd”, diz Convery. O ator, de 11 anos, traz em seu currículo participações em blockbusters como Venom (2018), baseado em HQs, e em dramas de prestígio como Querido Menino (2018), com Timothée Chalamet e Steve Carell.
Nos desenhos de Lemire, onde aparece comendo chocolates e outras guloseimas, Gus tem a dimensão de metáfora de quem traduz uma inocência perdida pelo predatório civilizatório. Unindo ideias e forças no posto de showrunner (mistura de idealizador, roteirista e produtor) da versão da HQ para a Netflix, pilotada pelo casal Downey, Jim Mickle e Beth Schwartz buscaram regar os episódios com as reflexões humanistas de Lemire.
“A ideia aqui é: o que vem da natureza volta para a natureza, de modo a fazer com que as novas gerações se instiguem, esperançosas, a preservar o que temos”, diz Beth.
Ela e Mickle trouxeram fotógrafos como Aaron Morton (cameraman de Tom Tykwer no cult Trama Internacional) para elaborar a luz no ambiente silvestre de Sweet Tooth. “Uma vez que estamos em um contexto de apocalipse, a maneira de aportar um olhar novo a esse código audiovisual era apostar no realismo, o que veio com as escolhas de enquadramento de Aaron e outros fotógrafos”, disse Mickle, que despertou a atenção da crítica ao dirigir o longa Mulberry Street – Infecção em Nova York (2006). “Desenvolvemos de uma maneira muito colaborativa uma série que nasce de uma experiência muito individual de criação de Jeff Lemire. É um artista que escreve e desenha sozinho, e que nos deu um universo rico.”
'Subversões são emotivas'
Entre as flechas do Arqueiro Verde e as elucubrações quase psicodélicas do Homem-Animal, Jeff Lemire aproveitou brechas na indústria dos quadrinhos nos EUA – disputado pela DC, a Marvel e a Dark Horse – para criar um trabalho particular, que tem os álbuns O Soldador Subaquático (2012), O Ninguém (2009) e Condado Essex (2008) como o apogeu de sua estética.
Tipos solitários, cuja rotina é um ímã de aspereza (mais a afetiva que física) – como o Jepperd de Sweet Tooth –, parecem ser a tradução de seu existencialismo, quase sempre mesclado a referências da identidade cultural canadense. Nos anos 1980, quando os gibis em escala industrial, de publicação mensal, ganharam um status mais adulto, graças às reflexões políticas, morais e ontológicas de Alan Moore (V de Vingança), Neil Gaiman (Sandman), Frank Miller (O Cavaleiro das Trevas) e Grant Morrison (Asilo Arkham), editoras de escopo popularesco, com tiragens milionárias, passaram a investir em talentos que injetassem inquietações filosóficas nas narrativas quadrinizadas, gerando best-sellers autorais.
A partir dos 2000, poucos quadrinistas capazes de unir prestígio e sucesso de venda despontaram na seara dos super-heróis. As exceções: Mark Millar (Kick-ass), Garth Ennis (The Boys) e Lemire, que se distancia desses dois por timbrar sua escrita de intimismo e fugir de uma representação mais pop da selvageria. Não existem vilões em Lemire, nem vigilantes inquebráveis como o esqueleto de adamantium de Wolverine, cujas histórias ele pilotou de 2016 a 2017, na fase Velho Logan. Há, sim, fragilidades, atos de coragem e paixões. “Existem situações de trevas que nos cercam. As minhas histórias passam por elas pra falar de perseverança”, diz Lemire ao Estadão, em entrevista via Zoom.
Desde novembro, ele vem trabalhando numa nova safra de histórias sobre o universo de Gus, ambientada 300 anos depois dos feitos a serem narrados na série. “Meu trabalho consiste em subverter arquétipos. Os durões, nas minhas histórias, entram em contato com seu lado mais emotivo, desmontando representações”, diz o quadrinista, nascido em Ontário, há 45 anos. “Subversões podem ser emotivas.”
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