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Opinião | Errei ao achar que ‘Ilhados com a sogra’ era mais um reality show fútil. Não é; entenda por quê

Programa da Netflix tem condições de abrir os olhos de gerações inteiras para a injustiça de tratar sogra como ser humano de segunda categoria

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Foto do author Simião Castro
Atualização:

Ilhados com a sogra é a nova aposta da Netflix na cartela de reality shows. E foi certeira. O formato é original brasileiro e tem tudo para virar mais um enlatado reproduzido ao redor do globo. Mas, se for assim, sorte do globo.

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São cinco famílias selecionadas. Casais acompanhados de uma das respectivas sogras. Os cônjuges chegam antes e passam uma primeira noite juntos numa praia deserta e paradisíaca — onde enfrentarão perrengues chiques.

Sem advertência, no dia seguinte chegam as sogras — e os filhos serão separados dos cônjuges e enviados para um bunker. De lá, assistirão aos parceiros e parceiras numa jornada por R$ 500 mil — competindo com esse novo par inesperado e quase sempre indesejado, se não desconhecido.

Enntrada do 'bunker' onde o grupo de filhos do reality 'Ilhados com a sogra' fica isolado dos demais participantes durante o programa Foto: Ricardo Carvalheiro/Netflix

Músculos e peles perfeitas substituídos por sentimentos

Até parece clichê, mas é que a série vai além da receita dos corpos musculosos e dos atritos requentados. A produção divertida mergulha na rivalidade cultural brasileira entre sogras, genros e noras, provocando reflexões sobre isso. E a fórmula tanto funcionou que uma nova temporada foi anunciada no último dia 7, menos de um mês depois do lançamento.

Tudo bem que a primeira impressão ao ouvir o nome é a de um reality fútil, como a franquia De Férias com o Ex, da MTV, o também brasileiro Soltos em Floripa, do Prime Video, e até Brincando com Fogo, da própria Netflix, entre vários outros do gênero. Em resumo, gente bonita e padrão com relações disfuncionais em conflitos superficiais — às vezes agressivos — e, claro, pegação desenfreada.

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Mas disso o que Ilhados com a sogra importa talvez seja apenas a disfuncionalidade, visto que o quesito briga ocorre mais na dimensão das discussões que da porrada. De certa forma, natural, considerando o quanto sogras são vilanizadas no Brasil e sinônimos de megeras, encrencas, víboras, cobras…

Em 'Ilhados com a sogra', participantes têm de remar para 'resgatar' sogras de um tablado no meio do mar Foto: Ricardo Carvalheiro/Netflix

Curiosamente — sarcasmo —, os sogros não gozam da mesma fama. É sempre com elas as associações de problemas dentro dos vínculos conjugais. São sempre elas as criadoras de caso. Não por acaso, inventaram um programa inteiro para explorar essas relações no streaming.

E nisso a Netflix é bem-sucedida. Porque dos oito episódios da série, uma minoria é composta pelas dinâmicas de prova e gincanas que valem pontos. Afinal, há um prêmio de meio milhão de reais em jogo. Na maior parte do tempo, o que está no foco são os dilemas, desaforos, confrontos e, por que não, humilhações dessa relação.

Dessa forma o reality vira quase um documentário, sob apresentação de Fernanda Souza - inspiradíssima - e mediação da psicóloga Shenia Karlson. Sim, esse tipo de dinâmica não daria certo sem a presença latente de uma profissional.

Mas nem tudo é drama. As provas são criativas, o elenco é cativante e há momentos efetivamente hilários.

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A partir da esquerda, Severina Tenório, Taninha Nery, Maria Cristina, Márcia, Socorro Sales, Rogéria de Castro e a psicóloga Shenia Karlson Foto: Ricardo Carvalheiro/Netflix

Ao final, a trajetória de reconstrução — ou rompimento — dessa relação é que é o grande ativo da experiência. E, olha, tem muita coisa para reparar ali.

Mães ultraprotetoras, ciumentas e em competição com os genros e noras. Genros ríspidos e ignorantes. Noras indiferentes. Filhos acomodados. Rancores, mágoas e ressentimentos acumulados de todos os lados. Sim, exatamente igual nas nossas famílias.

Brota a reflexão sobre esse papel da sogra enxerida, manipuladora, falsa e ardilosa. Junto do questionamento dessa posição de mães serviçais, domésticas, e à disposição integral. É por contestar todas essas convenções sexistas que o reality realmente vale a pena.

Ao centro, a psicóloga Shenia Karlson e a apresentadora Fernanda Souza, acompanhadas pelos participantes de 'Ilhados com a sogra' Foto: Ricardo Carvalheiro/Netflix

Transformação de perspectivas e preconceitos

Ao forçar a convivência e expôr os participantes, inclusive em provas de resistência nas quais é impossível fugir da empatia pelas sogras, a série permite uma transformação da visão dos genros e noras sobre as mães dos cônjuges. Claro que há exceções, inclusive com desistência da competição.

Mas depois de ver as pessoas cada vez mais humanizadas, vulneráveis e até fragilizadas, fica difícil olhar para elas com aquele desejo de enterrar de bruços, pro caso de acordar e começar a cavar — como prega a péssima piadinha passada de pai para filho.

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É provável que seja essa soma de elementos que tenha garantido a Ilhados com a sogra, um sólido segundo lugar no Brasil entre todas as séries mais assistidas na Netflix durante três semanas.

Ela chegou a figurar em primeiro, na semana posterior à da estreia. E na seguinte ela figurou também no top 10 mundial da plataforma. São feitos que valem nota, afinal, concorre com produções consagradas do planeta inteiro — principalmente americanas.

Casa onde é gravado 'Ilhados com a sogra' tem diferentes quartos e níveis de luxo, de acordo com a vantagens que os participantes alcançam após cada gincana  Foto: Ricardo Carvalheiro/Netflix
Opinião por Simião Castro

Repórter de Cultura do Estadão

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