“E se?” Eis a primeira parte da equação que rege uma ficção científica. A segunda parte é: “Se isso, então como?” Não basta imaginar uma situação hipotética: é preciso levá-la ao extremo e torná-la verossímil. Os escritores ruins do gênero contentam-se em imaginar de modo fetichista outros mundos possíveis, em situações pautadas por uma tecnologia de que ainda não dispomos no presente. Os grandes focam na segunda parte: levada a situação hipotética ao extremo, como as pessoas reagiriam? Qual o comportamento da humanidade em um ambiente ainda não tecnologicamente possível? Nascem aí os clássicos, de Admirável Mundo Novo, em que Aldous Huxley imagina uma sociedade perfeita, até A Cidade e A Cidade, de China Miéville, em que a ação é narrada em duas cidades que se superpõem no mesmo território, passando por Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick, cujo eixo é a distinção entre a inteligência humana e a artificial. Já em Solaris, de Stanislaw Lem (Aleph), o argumento é originalmente intrigante: e se a humanidade descobrisse um planeta 100% tomado por um oceano que também é uma inteligência viva? Como travar contato com uma inteligência alienígena que, em vários sentidos, é muito superior?
O tema está presente em filmes como Contatos Imediatos do 3º Grau e E.T. (cujos alienígenas parecem pacíficos), Alien – O Oitavo Passageiro (em que o extraterrestre é hostil) ou 2001 – Uma Odisseia no Espaço (como no recente A Chegada, a inteligência superior incentiva a humanidade a transcender). Em Solaris, contudo, o diálogo entre duas inteligências soa tão impossível quanto uma laranjeira conversando com um sabiá-laranjeira.
Descoberto há 200 anos, o planeta Solaris localiza-se a 760 anos-luz da Terra. Orbita um sistema regido por duas estrelas, mas sua gravidade parece controlada pelo oceano que recobre inteiramente sua superfície e é seu único “habitante”. Durante décadas, exploradores e cientistas chamados de solaristas, tentaram desvendar o comportamento do oceano, cujas ondas criam complexas e gigantescas cidadelas que levam nomes como simetríades e mimoides. Sucessivos desastres e acidentes misteriosos fizeram com que as expedições fracassassem; a exploração do planeta parece inglória até ser enviado o psicólogo Kris Kelvin.
Ao chegar à estação terráquea em Solaris, o psicólogo descobre que um dos cientistas a bordo morreu e os outros dois apresentam um comportamento bizarro. Logo é visitado por uma namorada que se suicidou aos 20 anos – um fantasma tão realista que mantém com ele longas e esdrúxulas discussões de relacionamento. Kelvin não demora a entender que o fantasma foi criado pelo oceano a partir de seus sonhos, memórias, sensações e divagações. Mas a paixão pela amada morta faz com que ele se deixe enganar, ou se finja enganado para entrar no jogo e compreender o propósito do planeta. Seus colegas de estação, contudo, pretendem atingir Solaris com uma tempestade de raios X capaz de destruí-lo – a velha briga burra entre colonizadores e colonizados: se você não entende outra civilização, acabe com ela. Por outro lado, o oceano é muito mais esperto e manipula mentalmente os terráqueos até o extraordinário final.
Vertido com elegância do polonês por Eneida Favre e embalado pelo belo design de Pedro Inoue, o romance que colocou Lem entre os grandes da ficção científica ganha, afinal, no Brasil, uma edição à altura. Lido à luz dos filmes homônimos que lhe trouxeram fama, o clássico do russo Andrei Tarkovski (Palma de Ouro em Cannes em 1972) e a versão mediana de 2002, dirigida pelo norte-americano Steven Soderbergh (com George Clooney à frente do elenco), Solaris demonstra-se mais desafiador. Lem tem uma capacidade impressionante de descrever cenários vivos, arte rara dominada por estetas do nível da canadense Margaret Atwood (Oryx & Crake, 2003). O mais intrigante em sua prosa saborosa e sóbria, porém, são as dinâmicas psicológicas por trás dos diálogos entre Kelvin e sua amada-oceano. É dessas conversas que o livro suscita questões: o amor é uma projeção? Como estabelecer contato com um ser dessemelhante? De que é feita a consciência? Qual o limite entre o observador e o observado? Até que ponto as memórias conformam uma identidade? De que substância é feita a linguagem? Qual o lugar da humanidade no universo, caso não sejamos de fato a inteligência superior que arrogantemente nos supomos?
A política, claro, para um autor tão filosófico quanto Lem, é outra camada de interpretação, e diversos críticos analisaram o romance como uma alegoria sobre os embates do colonizador e colonizado, um lembrete ecológico de que todo oceano é um indecifrável organismo vivo e até supuseram Solaris como uma metáfora do comunismo. Médico e psicólogo judeu que viveu a infância em um gueto sob o domínio nazista, mais tarde um satirista ateu que lutou pela liberdade de expressão sob o jugo de Stalin, Lem alcançou renome mundial com sua ficção científica iconoclasta; seus livros venderam mais de 28 milhões de cópias. Distanciando-se dos fetiches tecnológicos da vertente mais prosaica do gênero, Solaris permanece um enigma. Aquele livro que traz ao leitor muitas iluminações em torno da perguntinha incômoda: qual a natureza da realidade?
*Ronaldo Bressane é escritor, jornalista e autor, entre outros, do livro 'Mnemomáquina', do selo Demônio Negro
'Solaris' Autor: Stanislaw Lem Tradução: Eneida Favre Editora: Aleph 320 páginas Nas livrarias a partir de março
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