Sonhos em ditadura

No Reich nazista, as pessoas tinham sonhos ou pesadelos com assombrações, perseguições, aflições paranoicas, trocas de identidade, controle da mente, censura, prisões e tortura

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colunista convidado
Foto do author Sérgio Augusto
Atualização:

Hoje iremos ou voltaremos à Alemanha de Hitler, ao 3.º Reich, para não perdermos a simetria, digamos assim, nem algumas ilações e lições que podem nos ser úteis a partir de janeiro, caso Bolsonaro supere Lula no segundo turno .

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Tão logo Hitler assumiu o poder, em 1933, uma jornalista alemã de 26 anos, chamada Charlotte Aron, impedida de trabalhar por ser judia e comunista, decidiu ocupar seu tempo a verificar empiricamente se, como arrotava, orgulhoso, um figurão do Partido Nazista, os alemães só tinham vida privada enquanto estavam dormindo.

Como? Anotando os sonhos de seus vizinhos e conterrâneos.

Nem quando dormiam os alemães tinham paz, sossego e privacidade, descobriu Charlotte, que, durante a pesquisa, trocou de marido, sobrenome (Beradt) e endereços. No Reich nazista, as pessoas tinham sonhos ou pesadelos com assombrações, perseguições, aflições paranoicas, trocas de identidade, controle da mente, censura, prisões e tortura.

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Deve ser assim em todas as ditaduras, mas Charlotte Beradt (1907-1986) foi a primeira a repertoriar os efeitos de um regime autoritário no inconsciente coletivo e a contaminação dos sonhos pelos “restos diurnos” de uma realidade tenebrosa.

No Reich nazista, as pessoas tinham sonhos ou pesadelos com assombrações, perseguições, aflições paranoicas, trocas de identidade, controle da mente, censura, prisões e tortura. Foto: Pexels/Pixabay

As histórias que ouviu não surpreenderiam Freud e muito menos Wilhelm Reich. Um bom punhado delas parecem saídas de alguma ficção, peça ou poema de Brecht e Kafka – por sinal, os mais citados nas epígrafes, ao lado de Hannah Arendt. Um dos depoentes, de tanto ensaiar a saudação nazista para receber Goebbels em sua fábrica, acabou lesionando, tragicomicamente, a coluna vertebral.

Ao transcrevê-las, Beradt identificou seus protagonistas com nomes falsos ou de familiares inventados, para despistar as autoridades nazistas. O führer virou “tio Hans”, Goering aparece como “tio Gustav, e Goebbels é “tio Gerhard”.

Para evitar que os cadernos em que foram transcritas acabassem nas fogueiras de livros ateadas por torquemadas insuflados pelo governo, Beradt os despachou para amigos no exterior e só os pegou de volta na década seguinte, quando já vivia como refugiada em Nova York, sob as asas de Arendt.

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Só em 1966, Sonhos no Terceiro Reich, agora traduzido entre nós pela Fósforo, foi editado na Alemanha. É uma das obras mais originais da “literatura do Holocausto”, uma história oral aparentada com a que Svetlana Alekseievich fez com cidadãos da União Soviética do pós-guerra, uma espécie de diário coletivo, mas sem as contorções psicanalíticas e piruetas sociológicas a que o tema poderia induzir. Do que por essa ótica precisava ser dito cuidou, num longo texto introdutório, o psicanalista Christian Dunker.

Para sempre lamentarei não ter pensado num projeto similar, com os sonhos e pesadelos de quem aqui viveu e padeceu a ditadura de 1964. Se bem que, em regimes autoritários, os piores pesadelos costumam ocorrer depois que a gente desperta.

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