Tenho a impressão, constantemente reiterada, de que nenhum cineasta, à provável exceção de Hitchcock, tem maior presença na mídia do que Stanley Kubrick. Graças sobretudo a um colossal contingente de admiradores sem limitação geracional ou etária, que o mantêm mais em evidência que a maior parte dos diretores ainda vivos, atuantes, e ora e vez promovidos à custa de algum escândalo. Kubrick teria feito 90 anos na última quinta-feira, celebrou-se à farta em abril o cinquentenário de 2001: Uma Odisseia no Espaço, mas o badalo em torno dele e sua obra independe desse tipo de efemérides. Ao culto basta o que o acaso costuma agregar à reputação do cineasta.
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E que tanto pode ser um roteiro inédito repentinamente encontrado, por exemplo, como a revelação tardia de uma lista com seus filmes preferidos. Ou uma ocasional polêmica (Stephen King pichando O Iluminado). Ou um projeto engavetado na mira de outro diretor (Steven Spielberg herdou de Kubrick A.I. - Inteligência Artificial e demonstrou interesse em transformar em minissérie o abandonado filme sobre a vida de Napoleão Bonaparte). Noves fora os vídeo-ensaios traçando paralelos entre Kubrick e Andrei Tarkovski ou ligando seus personagens aos de outros cineastas.
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H. Peey Horton fez um clip em torno do escritor de O Iluminado, interpretado por Jack Nicholson, e Barton Fink, o igualmente alucinado roteirista dos irmãos Coen. Tem no YouTube. Num curto e surreal mashup de Adrien Dezalay, intitulado The Red Drum Getaway, as mais sinistras figuras de Kubrick espreitam e atormentam três personagens de James Stewart em filmes de Hitchcock. Também tem no YouTube.
Morto há quase 20 anos, Kubrick é um fantasma que se recusa a nos abandonar. Isso não é bom, é muito bom.
No início da semana, Kubrick foi lembrado por conta dos vestígios de vida alienígena que cientistas da Nasa encontraram numa das luas de Júpiter. O quinto planeta do Sistema Solar era o destino da Discovery One de 2001, em substituição ao Saturno escolhido pelo escritor Arthur C. Clarke. Pouco importa se os anéis de Saturno foram preteridos porque sairia uma fortuna reproduzi-los na década de 1960 sem os recursos da computação gráfica, que só estariam à disposição do cinema muitos anos depois. Kubrick poderia ter optado por Marte ou Vênus, mas fixou-se, prescientemente, em Júpiter.
Também há dias exumaram o roteiro de Burning Secret. Façanha do professor Nathan Abrams, da Universidade de Bangor, no País de Gales. Seria a terceira transposição ao cinema da novela de Stefan Zweig, publicada em 1913 e filmada pelos alemães Rochus Gliese (em 1923) e Robert Siodmak (1933). Nela, um predador sofisticado explora a amizade de um garoto de dez anos para seduzir sua mãe.
Mais interessantes que a regularidade cabalística da novela e suas adaptações ao cinema, são as similaridades entre o Don Juan de Zweig e o de Lolita, de Nabokov, que Kubrick adaptou à tela seis anos depois de descartar Burning Secret.
O inacabado roteiro, escrito de parceria com Calder Willingham, um dos precursores do moderno romance de humor negro americano, tem 100 páginas e o carimbo da MGM, com a data de entrega: 24 de outubro de 1956. Fazia quatro meses que Kubrick lançara seu terceiro longa de ficção, O Grande Golpe.
Numa das versões sobre o cancelamento do projeto, a MGM parece movida pelo medo; noutra, pelo ressentimento. Medo da possível reação negativa do público, por razões morais; ressentimento pela negociação que o cineasta acabara de firmar com a United Artists para a produção de Glória Feita de Sangue, filmada no primeiro semestre de 1957.
Com isso, caberia afinal a um ex-assistente de Kubrick, o britânico Andrew Birkin (irmão de Jane), dirigir a terceira adaptação ao cinema do romance de Zweig, que aqui foi lançado pela Nova Fronteira com o título de Segredo Ardente (no cinema, O Segredo de um Homem, que proporcionou a Klaus Maria Brandauer o prêmio de melhor ator no Festival de Veneza de 1988).
Kubrick se sentia mais seguro dirigindo roteiros com uma sólida base literária. Dos seus 13 longas, só o primeiro, o amadorístico Medo e Desejo, não saiu de uma obra ficcional. Também preferia escrever de parceria com alguém. Seu primeiro voo solo como roteirista depois de Medo e Desejo foi o malfadado épico sobre Bonaparte. Que, aliás, partiu de uma sólida base literária: a biografia escrita pelo oxfordiano Felix Markham, a que Kubrick acrescentou dezenas de outras leituras. Markham, por sua vez, cedeu 20 de seus alunos para catalogar as 50 pessoas mais importantes na vida de Napoleão, em ordem cronológica e codificadas em cores para facilitar sua localização na biografia.
A MGM financiou a pesquisa, mas assustou-se com o custo total estimado. Seria um épico com três horas de duração e inúmeras batalhas, rodado em 150 dias, com 50.000 extras, recrutados na antiga Iugoslávia e na Romênia, a dois dólares por cabeça. Kubrick meteu a tesoura no orçamento, reduziu seus soldados quase à metade, obteve licença para rodar no interior de palácios autênticos na França e Itália, e encomendou milhares de uniformes em papel especial, impermeáveis e descartáveis. Ainda nem fechara o elenco (provavelmente com Jack Nicholson, Ian Holm, Alec Guinness, Laurence Olivier, David Hemmings e Audrey Hepburn, no papel de Josefina) quando o estúdio, já sob nova administração, acendeu a luz vermelha.
Após a morte de Kubrick, uma cópia do roteiro apareceu na mina de sal de Hutchinson (Kansas) onde negativos, cópias e papelada de estúdio ficam guardados. Posta à venda no eBay, resultou num calhamaço recheado de anotações, fotos e material de pesquisa, editado em tiragem limitada, a US$ 3 mil o exemplar. Venderam-se todos os mil exemplares. Mais dois diretores, além de Spielberg, tentaram filmá-lo, sem sucesso: Ridley Scott e Ang Lee. Melhor não insistir. Com maldição não se brinca.
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