O tiro de revólver com que o presidente Getúlio Vargas abreviou tragicamente sua vida em 24 de agosto de 1954 no Palácio do Catete, no Rio, não adiou, como é senso comum, a ditadura militar por dez anos, opina a historiadora Maria Celina d’Araújo, uma das mais prestigiadas pesquisadoras de getulismo no País. Faltava às Forças Armadas naquele ano a coesão interna que atingiriam em 1964. “Ia assumir um presidente civil”, afirma.
Ela não acredita que se seguiria à queda de Vargas um regime militar como o que veio dez anos depois, em 1964. Concorda, porém, que o suicídio foi um gesto político contra a oposição, que colocava na rua um movimento armado contra o chefe de Estado. O ambiente para o golpe, avalia a historiadora, nasceu de um choque.
O conflito envolveu, de um lado, o modo de Getúlio fazer política, baseado em relações pessoais e de confiança e sedimentado nos anos em que viveu como chefe do Governo Provisório e ditador do Estado Novo, sem a mediação institucional. De outro, estavam as emergentes instituições democráticas pós-ditadura, que exigiam do presidente articulação com os partidos e diálogo com o Congresso, além de uma imprensa sem censura e agressiva. “Ele nunca governou com instituições”, explica Celina. “Não teve habilidade para conter as discussões no Congresso, apagar fogueiras.” Para ela, Getúlio não estava acostumado à política institucional e, como confiava em auxiliares, alheava-se até do que ocorria no Palácio.
O suicídio de Getúlio foi um ato de desespero ou uma atitude política?Era a maneira como Getúlio entendia que deveria responder a derrotas políticas. Porque já tinha preparado outras cartas para o caso de derrotas. Só que não fora derrotado (antes). Ele se viu derrotado mesmo naquele momento (1954). Aí acionou o recurso que vinha sendo pensado havia 24 anos. Acho que Getúlio tinha noção de quanto era querido pela população, tinha noção do que simbolizava para unir os trabalhadores. Explorou isso na última hora e acabou tendo muito sucesso. Era uma derrota política: estava liquidado, estava deposto. Ao mesmo tempo, sabia que podia mobilizar a massa. Isso ele conseguia fazer muito bem, ter o povo ao lado dele. Ele não sabia lidar com as instituições. Não sabia lidar com o Congresso, não sabia lidar com os partidos. Mas sabia fazer essa interface direta com a sociedade. Era um líder personalista.
Por que Getúlio não sabia lidar com as instituições?Porque ele nunca governou com instituições. Quando chega à Presidência em 1930, governa com estado de sítio. Rasga a Constituição, nomeia interventores. Desde 1930, governa com pessoas da confiança dele e pessoas que nomeia e comissões que controla. Mas não governa com o Congresso. O Congresso fica aberto muito pouco tempo de 1934 a 1937. Depois vem o Estado Novo. Quando volta, em 1951, o Brasil é uma democracia parlamentar. Esse jogo de ter de lidar com o Congresso, ver a dinâmica das votações, a liberdade de imprensa, que era uma novidade... Getúlio não está acostumado a isso. É muito interessante ver seu alheamento em relação às coisas que acontecem inclusive no Palácio. Gregório (Fortunato, chefe da Guarda Presidencial) fazendo aquelas coisas, comprando fazendas... Só que Getúlio confia nas pessoas e não tem uma assessoria parlamentar. Ele não tinha o perfil político para lidar com instituições representativas. Tinha governado como ditador, com assessores da confiança dele, com governadores que nomeava. Era um ditador.
O choque do perfil antigo de Getúlio, de sua forma de fazer política, com as novas instituições democráticas do Brasil da época pode ter ajudado a levar à crise que resultou em sua morte?Sim, claro. Ele não teve habilidade para conter as discussões no Congresso, apagar fogueiras no Congresso. Se a gente olhar os debates parlamentares de agosto de 1954, não tem ninguém no Congresso defendendo Getúlio com veemência, sabe? O Congresso todo o estava atacando com muita violência. Então faltou realmente essa capacidade de articular um grupo governista, articular com os partidos. Mas não era o estilo de Getúlio. Ele era um homem que governava com as pessoas de sua confiança. Quando teve de governar com as instituições – e as instituições têm sua dinâmica própria –, ficou muito limitado. Ficou meio solto.
Quem ainda apoiava Getúlio quando ele se matou?Ele tinha amigos. Tinha o Tancredo (Neves, então ministro da Justiça), tinha o genro (Ernani do Amaral Peixoto), tinha Osvaldo Aranha. Tinha amigos, mas não tinha o Congresso do lado dele. O próprio PTB não foi para a tribuna, aguerrido, defendê-lo. Sua maneira de fazer política era relacional, não era institucional.
Por que os militares que derrubaram Getúlio em 1945 permitiram que ele voltasse ao poder em 1951?O ministro da Guerra de Getúlio (marechal Eurico Gaspar Dutra) foi ser presidente da República! Então não teve essa ruptura. Tem um arranjo político aí, um compromisso muito sério. E Getúlio vai para o Rio Grande do Sul, que os petebistas chamam de exílio, mas na verdade era um senador da República, um senador faltoso. Ele se deu esse luxo. Foi eleito senador, mas ficou lá costurando, vendo como a população reagia.
História contrafactual: se Getúlio não tivesse cometido suicídio, o que teria acontecido?Acho meio equivocada a tese de que (o suicídio) adiou o golpe militar por dez anos. Não concordo. Porque em 1954 ia acontecer um golpe militar, mas ia assumir um presidente civil. As Forças Armadas não tinham em 1954 o mínimo de coesão interna para exercer o governo. Em 1964, elas tinham. Em 54, não existia ainda uma liga entre as três Forças, nem dentro de nenhuma das Forças, para se transformarem em governo. Ia haver um golpe, mas sem se transformar em ditadura militar.
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Maria Celina D'Araújo é professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-RJ) e especialista em Getulismo
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