A paixão muda é a paixão mais angustiante: alguém expande sua interioridade sem compartilhar a dimensão dessa nova intimidade descoberta. Aos poucos, essa paixão muda contagia com pensamentos envenenados as pessoas com quem esse apaixonado divide seu cotidiano. O silêncio dilacera a segurança do hábito; desalinha a convivência, corrói vigas, pontes. O silêncio assume uma posição de afronta, e o conflito inescapável se desenha. A Vegetariana, da sul-coreana Han Kang, é uma narrativa bélica travada no coração de uma família atingida pelo mistério de uma interioridade inacessível.
A Vegetariana abraça de início desgastados clichês da comédia de costumes: um homem socialmente apagado, casado com uma mulher cuja falta de qualidades lhe conforta, precisa contornar o que entende como um repentino capricho de sua até então exemplar esposa modelo: Yeonghye decide não comer mais carne por conta de um sonho. O leitor, no entanto, sabe por meio das descrições dos sonhos de Yeonghye que aquilo que o marido descreve e narra, entre irritado e admirado, é fruto da sua falta de compreensão do que acontece. A cada página, a tensão aumenta.
A decisão de Yeonghye de não comer carne libera um vórtex de ansiedades, de ressentimentos sociais e sexuais, de medos inconfessáveis em sua própria família. Na primeira parte, narrada pelo marido, ainda há descrições de seus sonhos: existe alguma entrada, mesma que tangencial, em seu pensamento. Porém nas duas partes subsequentes, que acompanham momentos da vida de seu cunhado e de sua irmã mais velha, Yeonghye é constante em seu desejo de ir se alheando do mundo ao seu redor, estoica e frágil, mas assumindo uma forte revolta quando forçada a evadir de sua escolha.
Se a primeira parte, A Vegetariana, assume um registro de comédia de costumes, a seguinte, chamada A Mancha Mongólica, é a exploração paulatina de como o desejo sexual pode assumir uma violenta voragem. Mais de um ano após o alucinado jantar familiar, o cunhado de Yeonghye se encontra em uma encruzilhada como videoartista. Em seus cadernos, esboça sequências de um vídeo em que motivos florais e botânicos estão tatuados no corpo de dois amantes. Quando sua esposa comenta que sua irmã ainda possui uma mancha mongólica esverdeada nas costas, ele entra em um estado de obsessão erótica que relembra as melhores páginas de Junichiro Tanizaki: um cerco erótico e sexual que enreda sua cunhada numa neurótica obsessão pornográfica com consequências dramáticas para a família.
A Vegetariana fecha com a irmã mais velha visitando Yeonghye em um hospital psiquiátrico. Árvores em Chamas é a mais dolorosa parte do romance. Ela é chamada ao hospital por conta do desaparecimento da irmã; dias mais tarde, antes mesmo que consiga se organizar para visitá-la, seguranças do hospital encontram Yeonghye em um desfiladeiro, contemplando uma montanha. A memória de Inhye reverbera todos os acontecimentos do romance até então, e enquanto se dirige ao hospital seus pensamentos assumem pristina clareza: os limites entre loucura e razão, o que é ter saúde e ter doença, a presença constante da morte, suas pequenas culpas e seus grandes arrependimentos. Árvores em Chamas se passa apenas em uma manhã e tarde no hospital, e o encontro de Inhye e sua irmã no leito tem o único verdadeiro momento de diálogo do romance, em que alguém afinal escuta Yeonghye e, mesmo sem entender sua busca, compreende seu profundo desapego. As páginas finais de possuem as mais fortes descrições do livro: um corpo se esfacelando, e resistindo à vida.
É difícil precisar onde reside a força com que a prosa de Han Kang impacta o leitor. A prosa é pedestre, comedida, atônica. Avança sem sobressaltos. Kang, no entanto, é uma mestre da clareza, e nesse ponto as comparações com Kafka são pertinentes. A impressão que a leitura de A Vegetariana deixa é poética: a cada dezena de páginas há uma imagem construída por Kang que convida o leitor ao exercício de decifração. A Vegetariana é um clássico contemporâneo que merece leituras e releituras. *Vinicius Jatobá é crítico literário e ficcionista
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