287, Kennington Road onde, no dia 16 de abril de 1889, nasceu Charles Spencer Chaplin, acha-se naquela parte de Londres que a pobreza havia tornado famosa mesmo fora das ilhas britanicas. Ali, entre Whitechapel, East-End e Lambeth, passou Chaplin sua meninice.
"Viviamos num quarto miseravel", recorda Sidney, o irmão mais velho de Chaplin. "Frequentemente, nada tinhamos para comer. Nem Charlie nem eu possuiamos sapatos. Muitas vezes, minha mãe tirava suas botas e um de nós calçava-as para conseguir a sopa popular, a unica refeição do dia para todos nós" (1).
Anos depois, ao falar naqueles tempos longinquos, Chaplin teve a coragem de reconhecer tristemente:
"Naqueles dias, o unico elemento constante da minha vida foi a fome e o medo do amanhã, o continuo, ininterrupto medo do amanhã. E não há nada que me possa libertar deste medo, nenhum sucesso, nenhuma prosperidade. Fiquei marcado para sempre por este temor da pobreza e da privação" (2).
Quando a mãe de Charles, após a morte do marido, não mais conseguindo manter as crianças, foi acometida de uma depressão nervosa que a conduziria ao hospicio, Charles e Sidney acostumaram-se a dormir na rua e a alimentar-se de frutas estragadas, roubadas habilmente das feiras. Ademais, "Charles conseguira uma especialidade: com pedaços de madeira e pedaços de cortiça que encontrava no lixo, fabricava pequenos barcos; vendia-os a outras crianças por um penny..." (3).
Muitos inimigos de Chaplin adulto, do Chaplin famoso, franco, corajoso, zombariam destas recordações do irmão. Para eles, um "senso inato dos negocios teria preservado o pequeno Chaplin da miseria" - senso inato, pois, embora se tratasse da criança de uns seis anos apenas, Charles Chaplin era de origem judaica.
Na verdade, são bastante nebulosas essas origens judaicas de Charles Chaplin. Manuel Villegas Lopez afirma que "seu pai era descendente de familia judaica convertida ao dogma anglicano" (4), enquanto F. Silva Nobre, em sua obra compilatoria (5), assim escreve sobre o pai de Chaplin: "Descendente de familia judia de origem francesa, havia obtido certa notoriedade como ator do music-hall". Por outro lado, George Sadoui e Jean Mitry, se bem não mencionem as origens israelitas do pai de Chaplin, referem-se a essas origens do lado materno. "Filha de familia burguesa de origem judeu-irlandesa" - informa sobre a mãe de Charles o historiador Jean Mitry - tornou-se atriz, conhecida sob o nome de Florence Harley ou Lily Jarley, tendo pertencido à empresa de operetas de Gilbert e Sullivan. Na idade de vinte anos esposou um "bookmaker" israelita, Sidney Hawkes, de quem teve três filhos..." (6). Mesmo Maurice Bardèche e Robert Brasillach, dois anti-semitas notorios que só mencionam a participação dos israelitas na historia de cinema para dar vazão às suas tendencias antijudaicas, reconhecem, se bem que a contragosto, essas origens de Chaplin (7). Finalmente, Pierre Leprohon, embora sem esclarecer precisamente qual a origem religiosa de Chaplin, nota que, ao falarem de seu rapido sucesso, "seus companheiros do passado referem-se a ele como a um judeuzinho que teve sorte" (8).
Todavia, é digno de nota que Chaplin sempre ignorou a realidade de seu nascimento naquilo que ele teve de aleatorio e ocasional, de independente da vontade humana. Totalmente alheio à procura de valores individuais nos fatores hereditarios, Chaplin nunca mencionou suas origens, nunca reparou especificamente nos judeus que o cercavam, mesmo quando viviam em condições identicas às do East-End. As condições, essas sim, interessavam-no sempre. Em suas memorias, dedica muito espaço a esses problemas socio-economicos. Apenas, ao falar de sua mãe, deixa levar-se pela ternura:
"Minha mãe era a mais assombrosa imitadora que tenho visto na minha vida. Quando meu irmão Syd e eu eramos garotos e moravamos em Kennington Road..., ela gostava de ficar à janela horas a fio, fitando a rua e reproduzindo com as mãos, os olhos e a fisionomia tudo quanto via embaixo. Foi espiando-lhe os gestos e observando-os que, não apenas aprendi a traduzir as minhas emoções mas, também, a estudar a humanidade" (9).
Ao mesmo tempo, porém, Charles omite sua primeira participação no palco, em um "show" ao lado do seu pai que, dois meses depois, faleceria num hospital de Chelsea. Charlie tinha, então, cinco anos apenas. Seis anos depois, graças a seu irmão Sidney, já contratado para interpretar o papel do pequeno ladrão Sid Price, Charles iniciava sua carreira artística numa das numerosas peças a glorificar as aventuras de Sherlock Holmes. Voltaria ao mesmo papel em 1905, ao lado de William Gilette e Irene Vanbrugh, artistas de certo renome em Londres. Mas, quando a peça saiu do cartaz, aceitou o emprego num "music-hall" do East-End, aparecendo perante o público como "Sam Cohen, comediante judaico" (10). Quatro anos depois, em 1910, substituindo seu irmão Sidney, retido por contrato em Londres, embarcava para os Estados Unidos para se exibir em "Colonial Theatre" de Nova York, como substituto de um comediante da empresa karno de revistas teatrais à qual, em Londres, pertencia Sidney.
Nos 77 filmes que fez, nos 38 anos que separam o inicio da filmagem de "Making a Living" (16 de janeiro de 1914) e a primeira apresentação mundial de "Luzes da Ribalta" em Londres (16 de outubro de 1952), nada permite crer existam quaisquer ligações, qualquer sentimento especial entre Charles Spencer Chaplin e o judaismo. Nenhum pronunciamento ou entrevista abordou este problema. E de todos os seus 77 filmes, apenas em três aparece um individuo marcado e caracterizado como judeu. Destes três, porém, dois são puramente ocasionais.
Uma dessas aparições se dá no filme "The Immigrant". Todavia, os imigrantes judeus, excelentemente bem caracterizados, não têm qualquer significação dramatica especial.
Constituem apenas o fundo humano para o filme cuja ação se passa no momento do maior afluxo dos emigrantes europeus aos Estados Unidos e que marca (no contraponto da sequencia que compara a frieza da Estatua da Liberdade com o tratamento dispensado aos imigrantes pelas autoridades norte-americanas) o inicio da luta social e politica de Charles Chaplin, luta essa que iria colocá-lo, mais tarde, na oposição ao convencimento social da America do Norte. Assim mesmo, ao lado dos judeus, aparecem neste filme, completando o fundo humano em proporção correspondente à realidade, os emigrantes não judeus.
O judeu do filme "The Pawnshop", realizado na mesma epoca, representa o carater e mentalidade de UM comerciante, de UM patrão qualquer. Pouco importa, sob o ponto de vista dramatico, ser ele judeu e viver num ambiente de estabelecimento comercial especificamente judaico. De fato, não é o judaismo que é sublinhado mas, sim, a maneira de pensar e o modo de agir comum a certas classes economicas e sociais identificadas com a pequena burguesia internacional e cujas caracteristicas independem da religião professada ou das origens nacionais ou racionais de seus componentes. Um quarto de seculo mais tarde, o pequeno barbeiro judeu do gueto, em "O grande ditador", representará, do mesmo modo, muito mais os perseguidos em geral do que os judeus em particular embora, de maneira identica, seja tipicamente judaico o proprio gueto, apresentado por Chaplin neste filme com a mesma agudeza que caracteriza a descrição pictorica da loja do comerciante naquela pelicula.
Todavia, enquanto nestes dois filmes os emigrantes judeus e o comerciante judeu constituem apenas o fundo destinado a destacar melhor a personagem universal de Carlitos - universal pois não identificada com qualquer grupo definido - em "O grande ditador" Carlitos identifica-se indiscutivelmente: ele é judeu. Ele pertence a uma religião, uma raça, uma nacionalidade - pouco importa o termo desde que se caracterize claramente o grupo elevado ao simbolo dos oprimidos. Uma só vez Carlitos agiu de modo semelhante na vida particular, solidarizando-se com um grupo de perseguidos que englobava diversas camadas sociais: quando Henry Ford fez publicar, em seu diario "The New Democrat", o artigo anti-semita, "The International Jew", foi, segundo as fontes israelitas (11), por iniciativa de Chaplin que os meios judaicos atingidos reagiram numa onda de protestos contra aquele ataque gratuito e insensato. Todavia, neste ato Chaplin não parece ter-se integrado ao grupo cuja defesa organizara sem nela, posteriormente, tomar parte realmente ativa. No filme ocorre o contrario: totalmente identificado como judeu, sua resistencia à opressão, sua luta contra a perseguição é, no inicio, inconsciente.
É à medida em que a luta continua e em que o judeu oprimido vem a identificar-se com todos os oprimidos através dos personagens de outras origens nacionais que o auxiliam, demonstrando a inocuidade dos odios, que aumenta a convicção de Chaplin-barbeiro de que, elevada ao pedestal de um ditador, qualquer pessoa conseguiria conduzir as massas em direção a um mundo melhor. Todavia "O Grande Ditador" diminuiu a universalidade de Carlitos, pois esse, ao identificar-se com um grupo real, embora tratado simbolicamente, deixou de representar todos os oprimidos de todos os grupos.
Paradoxalmente, porém, muitos autores julgam que a universalidade de Carlitos deve-se principalmente ao judaismo de Chaplin. Assim, Marcel Espiau, emitindo um conceito racista e por isso perigoso embora aparentemente positivo, escreve (12): "Se bem que ele não tivesse lido hebraico, Chaplin conserva, talvez inconscientemente, todo o receio e toda a curiosidade de sua raça", para explicar a seguir que o proprio personagem de Carlitos leva em si "o germe indelevel das raças perseguidas; tudo nele é judaico e a perseguição dos judeus constitui a origem de sua revolta, sua paciencia, sua resignação, seus desejos". E mesmo Pierre Leprohon afirma: "Chaplin possui traços essencialmente judaicos" (13), citando, ademais, para reforçar essa opinião, a afirmação peremptoria de Jerôme e Jacques Tharaud: "Charles Chaplin é judeu e todos os elementos de seu humor trazem a marca judia". Evidentemente, a capacidade de rir de si mesmo, e auto-satira mordaz constituem uma caracteristica do humor judaico; possuem-na porém, mais ou menos acentuadamente, quase todos os grupos ou indivíduos "marginais", ou seja, postos à margem pela sociedade dominante ou pelos grupos governantes. Constitui, todavia, uma caracteristica mais profunda do humor judaico a mistura do riso um tanto tristonho com a continua e forte dose de esperança e de otimismo que chegam às raias da fantasia e do impossivel. E não esqueçamos que as asas do anjo que simbolizavam essa esperança, foram no filme "The Kid" ("O garoto"), adquiridos numa loja de judeu.
Generalizando, pode-se ainda fazer um paralelo entre a solidão de um ser humano, de um individuo oprimido e injustamente desprezado, e a de um grupo humano em identica situação coletiva: pode-se comparar Carlitos ao Judeu. Lembremos, porém que Chaplin, pessoalmente, de outro modo explicava sua posição: "O meu segredo todo, escreveu, é ter sempre conservado os olhos abertos... Eu estudei o Homem, pois, sem conhecê-lo, nada poderia ter feito. É o conhecimento do Homem que constitui a base de todos os sucessos".
E se Chaplin conduz Carlitos às andanças pelos caminhos do sem-fim, ao terminarem seus filmes, talvez não se deva esse fato, como pretende Pierre Duvillars (14) às "fontes do genio judaico" que, em Chaplin, representam "o mito eterno do judeu errante", porquanto, na realidade, Chaplin não erra: apenas procura um caminho que o levaria a um mundo melhor, nem que fosse ao mundo de sonhos do pequeno Charlie que "preferia dormir nos bancos dos jardins publicos do que na cama de seu quarto miseravel".
Buscas vãs! Chaplin ficou só, tanto na vida quanto nos seus filmes, apesar de sua riqueza e gloria. Em 1940, quando terminava "O Grande Ditador", ainda tinha esperanças dedicadas à mulher judia que muito mais animo e fé necessitava do que o proprio Chaplin podia supor naquele inicio da carnificina cuja amplitude então ignorava. A mulher que recebeu, simbolicamente, a mensagem de esperança, tinha o nome de sua mãe.
"Onde quer que estejas, Hannah, ergue o olhar! Levanta os olhos, Hannah, que as nuvens se dissipam! O sol as trespassa. Saimos da obscuridade para entrar na luz, para entrar no mundo melhor, onde os homens elevar-se-ão acima do odio e da brutalidade.... Olha, Hannah, foram dadas asas à alma humana - e ei-la subindo ao arco-iris, à claridade, à esperança; ao futuro glorioso que te pertence, Hannah! Levanta os olhos, Hannah, olha o céu e ouve..."
Mas Hannah não pode ouvir. Ficou esmagada, com milhões de outros inutilmente esperançosos, diante do mundo cuja impassibilidade abafou os apelos ilusorios. Com Hannah, morreu Carlitos. Monsieur Verdoux revelou-se apenas cheio de amargura e de decepção. E Calvero compreendeu melancolicamente que findara. Banido da sociedade dentro da qual e para a qual vivia, Charles Chaplin ficou terrivelmente só. Nem suas glorias do passado nem a luta que travara pela humanidade bastaram para que fosse evitado tanto seu diaspora individual amainado pela excepcional felicidade matrimonial, quanto a permanencia prolongada em seu gueto cultural suiço ao qual o conduzira a fé inabalavel nos destinos do mundo.
(1) Citado por George Sadoul, "Lavie de Charlot", Les Editeurs Français Réunis, Paris, 1952; página 12.
(2) Citado por Pierre Leprohon, "Charles Chaplin", Les Editions Jacques Melon, Paris, 1946; pagina 13.
(3) Georges Sadoul, op. cit.
(4) Manuel Villegas Lopez: "Carlitos", tradução de Melo Lima. Cia. Editora Leitura, Rio de Janeiro, 1944; pagina 46
(5) F. Silva Nobre: "Roteiro de Carlitos", Irmãos Pongetti Editores, Rio, 1958: pagina 26.
(6) Jean Mitry: "Charlot et la fabulation Chaplinesque", Editions Universitaires, Paris, 1957; pagina 157.
(7) Maurice Bardècne e Robert Brasillach: "Histoire du cinéma". Ed. André Martel, Paris, 1948. Nova edição (parcialmente expurgada das tendencias pró-nazistas).
(8) Pierre Leprohon, op. cit.; pagina 93.
(9) Idem. pagina 26.
(10) John Montgomery; "Comedy Films", George Allen & Unwin, Films", George Allen & Unwin, Londres 1954: pag. 98. Alguns biografos contestam essa informação acreditando tratar-se apenas de um "numero" interpretativo assim intitulado.
(11) Cesar Tiempo: "Anatol France y Charlie Chaplin", artigo publicado em "Tribuna Israelita" de Mexico, em agosto de 1952.
(12) Marcel Espiau: "Chaplin, Molière juif"; revista "Vu" do 1 de abril de 1931, citada por Pierre Leprohon, op. cit.; pagina 256.
(13) Pierre Leprohon, op. cit.
(14) Pierre Duvillars: "Cinéma, mythologie du XX siècle", Editions de l'Ermite, Paris 1950; pagina 84.
Câmera e Jornal
Formado pela Escola de Altos Estudos Cinematográficos de Paris, Marcos Margulies nasceu em Lodz, na Polônia, em 1923, e morreu no Rio, naturalizado brasileiro, em 1982. Trabalhou como jornalista, editor, professor e psicólogo - e foi um premiado documentarista. Criou a editora Documentário, em 1973, pela qual lançou Do Racismo ao Sionismo (1976), abordando algumas das questões que o ocuparam em toda a sua trajetória - e que o credenciavam a redigir um trabalho como este, do SL. Chaplin, seu tema aqui, morreria em 1977.
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