Quando as pessoas perguntavam a Susan Sontag qual a sua característica mais conhecida pelas pessoas, a intelectual, ensaísta, romancista e ativista política costumava contar, com apenas uma pitada de ironia: a mecha branca em seus cabelos escuros. Sontag, que não subestimava suas conquistas literárias ou enfatizava seus atributos físicos, provavelmente tinha acertado. Vendo-se de outra forma, ela se tonou melhor conhecida como pessoa pública, que o biógrafo Benjamin Moser gosta de chamar “Susan Sontag entre aspas” – pelo impressionante volume da escrita, que é seu legado. Moser passou sete anos escrevendo Sontag, um tomo de 800 páginas (lançado esta semana nos EUA) que traça o arco de sua vida desde quando era a precoce Susan Lee Rosenblatt, nascida em 1933, até ser um símbolo cultural. Ele explora as forças trágicas, cômicas e complexas que se combinaram para criar Sontag, o ícone.
Durante o primeiro tratamento de quimioterapia para o câncer em 1975 (doença que a levou à morte em 2004, aos 71 anos), Sontag não perdeu o cabelo, mas ficou completamente grisalha. Pouco depois, ela viajou para o Havaí para ver sua mãe, Mildred, que “recrutou uma amiga, cabeleireira”, escreve Moser, em sua “perene campanha para cuidar da filha – defendendo que Susan se vestisse melhor, usasse maquiagem”.
A estilista tingiu tudo, menos uma tira do cabelo de Sontag. O resultado foi tão emblemático de Sontag, Moser nos diz, que o Saturday Night Live tinha até uma peruca que se assemelhava ao cabelo dela em seu departamento de vestuário – “uma figura de linguagem cômica para o intelectual de Nova York”.
Em um movimento característico da abrangente abordagem de Moser (estabelecida em Clarice, uma Biografia ), sua aclamada biografia de Clarice Lispector, ele localizou o cabeleireiro que criou o visual, Paul Brown, uma das 600 pessoas que Moser entrevistou, muitas delas mais de uma vez. Ele também encontrou uma foto de Sontag, imediatamente após a mudança, usando uma espécie de camisola.
Isso não sugere que o projeto de Moser seja de modo algum superficial. Robusto tanto em volume e alcance interpretativo, Sontag é um marco biográfico, a primeira grande reintrodução ao público de um peso pesado literário incomparável, desde sua morte, há 15 anos. Moser mergulha profundamente na vida pessoal de Sontag e em seu trabalho, explorando escritos publicados e não publicados e dando um tempo com frequência para analisar as influências emocionais, intelectuais e sociais de Sontag.
Sontag é uma jornada episódica de uma vida e um corpo de trabalho crítico que cria de forma misteriosa uma intersecção com eventos históricos do século 20, desde a Guerra do Vietnã até a queda do Muro de Berlim, o surgimento da aids e o cerco de Sarajevo. Moser explora a infância de Sontag com uma mãe solteira extremamente vaidosa, seu casamento precoce e a maternidade; seus casos famosos, com Robert Kennedy, com o pintor Jasper Johns, com a dramaturga Maria Irene Fornés e com a coreógrafa Lucinda Childs; assim como com sua luta para se manter conectada com as pessoas que ela realmente amava, como o filho David Rieff e a fotógrafa Annie Leibovitz, com a qual mantinha um duradouro relacionamento que muitas vezes negava em público.
Os responsáveis pelo patrimônio de Sontag deram a Moser um acesso sem precedentes aos arquivos da autora, mantidos nos arquivos da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que inclui mais de 100 periódicos, milhares de cartas, fotografias de família, rascunhos de manuscritos e até mesmo seu computador pessoal.
“Ela estava na encruzilhada de tudo e de todos em todos os lugares”, disse Moser, durante uma entrevista no ensolarado átrio de sua casa do século 17 em Utrecht, na Holanda. “Ela é como a Falha de San Andreas, onde tudo simplesmente se junta; política ou cultura ou sexualidade ou arte, ela era alguém que sempre estava ali. Então, a grande dúvida era: “Por onde começar? ”
O livro foi originalmente vendido para Farrar, Straus & Giroux, mas Moser disse que ele se mudou para a Ecco, uma das marcas da HarperCollins, no meio do projeto.
“Susan e Farrar (FSG) estiveram tão profundamente conectadas ao longo de sua carreira”, explicou Moser em um e-mail. Eu achei que era importante dar a este livro um espaço para respirar, fora daquele relacionamento”. Jeff Seroy, vice-presidente sênior de publicidade da FSG, disse em um e-mail que a troca fora “uma decisão mútua” e se recusou a fazer mais comentários.
A irmã de Sontag, Judith Zwick, permitiu que Moser olhasse documentos e outras recordações pessoais em seu poder. “Ben estava tentando fazer algo completo e algo muito verdadeiro", disse ela. "Acho que nunca disse ‘deixe isso de fora’ para ele. Eu sempre me senti muito à vontade com ele". Moser estava particularmente interessado em entrevistar Leibovitz, que anteriormente não havia falado sobre o relacionamento em público, e repetidamente disse a Moser que não tinha tempo para conversar com ele. “Em algum momento pensei: ‘Tudo bem, não vou perseguir essa pessoa. Era a parceira dela; eu tenho que respeitar isso’”, disse Moser.
Então, alguns anos atrás, Moser estava andando pela rua em Paris e recebeu uma ligação de uma intermediária. Segundo Moser, ela disse: "Annie decidiu falar com você. Que tal amanhã às 15h30?’ Consegui uma passagem e parti naquela noite, cheguei a Nova York e fiz minha entrevista, e depois voei de volta para Paris em um único dia.”
A relação entre Sontag e Leibovitz, segundo a descrição de Moser, era de certa forma como a de duas peças perfeitas de um puzzle: Sontag era fascinada pela fotografia e Leibovitz, uma fotógrafa mundialmente renomada que retratava principalmente celebridades. Mas no relacionamento, ela era dominadora e criticava duramente Leibovitz, uma dinâmica que parecia ser penosa para todo mundo que a testemunhou, menos para Leibovitz. Moser disse, referindo-se a Leibovitz: “De todas as pessoas que conheci, entre as quais havia muitas e muitas interessantes”. Ela, segundo o biógrafo, estava preocupada com rumores que circulavam, segundo os quais Leibovitz se aproveitava financeiramente de Sontag e queria deixar as coisas esclarecidas. Mesmo assim, disse, Leibovitz acabou sendo extremamente sincera com ele. “Você percebe que ela simplesmente amava Susan, e com isso quero dizer, você realmente sente isso quando está com ela.”
Moser conversou com outros amores de Sontag, assim como amigos dela e autores como Jamaica Kincaid e Camille Paglia e atores com os quais ela trabalhou para uma montagem de Esperando Godot em Sarajevo, em 1993.
Moser é fascinado pela dicotomia entre a Sontag pública e a aparentemente imperturbável e intransigente mulher da vida privada, que sofreu com um “terrível sentimento de inadequação”, cuja “falta de capacitação para as coisas da vida diária era torturante para si e para os outros”. Ele explora essa dualidade e a própria percepção de Sontag de quão difícil é cuidar da Sontag que as pessoas queriam que ela fosse. No final dos anos 1980, quando contratou o agente literário Andrew Wylie, ela pediu que ele assumisse uma posição no planejamento de sua complicada agenda.
Uma das primeiras descobertas da biografia de Moser, relatada pela primeira vez pelo The Guardian no início deste ano, é aquela em que o assunto está totalmente ausente. Ele credita Sontag como a verdadeira autora de Freud: A Mente do Moralista, o trabalho seminal de Philip Rieff, o ex-marido, com o qual ela se casou quando tinha 17 anos.
Moser cita uma carta que Susan escreveu a Zwick, sua irmã, na qual ela descreve seu trabalho para Rieff: “Ele corrige o que escrevi, mas apresenta ao editor em seu próprio nome. Em outras palavras, sou uma ghost writer!” É parte da criação de Moser a defesa de um caso no qual Sontag abre mão dos direitos de autoria do livro sobre Freud em troca da custódia de seu filho no subsequente divórcio do casal.
“É claro que ela escreveu”, disse Zwick em nossa entrevista. “Nós sempre soubemos disso. Muitas pessoas sempre souberam disso.” Moser viu uma cópia do livro no qual Rieff escreveu uma dedicatória pessoal a Sontag, creditando-a como coautora 40 anos depois. Mas ele nunca encontrou um acordo legal assinado, que teria resolvido o problema definitivamente.
“É uma lacuna interessante”, disse Moser. “Não há quase nada no arquivo. Ela falou sobre isso toda sua vida; foi um episódio realmente traumático para ela”. Moser defende sua interpretação do papel de Sontag ao escrever o livro de Rieff – “Eu li o suficiente de sua obra para saber que é a voz dela, é a forma de pensar dela”, disse ele – mas ele não se importa se o seu trabalho gerar algum debate sobre esse ponto.
“Biografia é uma metáfora”, disse Moser. “Não é a vida da pessoa; é escrever sobre a vida de uma pessoa. Assim como uma fotografia – muitas pessoas tiraram fotos dela e são todas diferentes. Você precisa encontrar a sua maneira de olhar para ela, e esta é a minha forma de olhar para ela”. / Tradução de Cláudia Bozzo
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