Tarântula, de Bob Dylan, que já havia sido publicado no Brasil em 1986 pela editora Brasiliense, na tradução de Paulo Henriques Britto, ganha agora uma nova edição, organizada pela Planeta, e uma nova tradução, assinada por Rogério Galindo.
O livro retorna em boa hora. Depois de o artista norte-americano ganhar o Nobel de Literatura no ano passado e das polêmicas sobre a concessão do prêmio, muitos ficaram curiosos para conhecer melhor, ou com um outro olhar, a obra de Dylan.
Tarântula traz à cena um escritor extremamente radical, “Bob Dylan expressando o inexpressável”, como se lê na introdução da edição inglesa do livro, reproduzida nesta nova publicação no Brasil. Portanto, não pense o leitor que encontrará no livro uma narrativa clara e objetiva como muitas letras compostas por Dylan. Segundo o artista, Tarântula era aquilo que ele não podia cantar, talvez por ser longo ou complexo demais.
As histórias do livro são narradas como se o escritor estivesse em transe ou dormindo, parecem uma série de anotações desencontradas, como se ele estivesse esboçando apenas um rascunho, algo ainda inacabado: “enquanto passam ventos negros e brancas sextas-feiras, eles lavam água & guincho de selva & lenny imune à matemática, ele, o charlatão gorduroso”.
Acompanha também a nova edição um texto de Bob Markel, o primeiro editor do livro, publicado originalmente em 1971 pela Macmillan; nele, Markel conta que, quando Bob Dylan apresentou o texto à editora, era, de fato, um trabalho em andamento. Dylan iria “fazer mudanças” no texto antes de sua publicação. Mas Tarântula acabou não sendo modificado. Depois de algum tempo, o escritor resolveu publicá-lo como estava.
É interessante pensar na ideia de um livro rascunho. Segundo Ricardo Piglia, “os rascunhos podem ser lidos como literatura potencial, são modos de imaginar o que pode ser um relato. Linguagem em potência”. E, prossegue Piglia, “muitos escritores parecem ter trabalhado com essa potência”. Seria talvez o caso de Joyce, mais especificamente em Finnegans Wake; e de Georges Perec, entre outros tantos. Dylan, sempre atento às vanguardas, deve ter-se inspirado nessa possibilidade de linguagem ao optar em publicar seu livro “rascunho”, característica que faz com que ele esteja sempre em processo e expresse sempre a possibilidade de continuar de outro modo, como afirma Piglia a respeito dos rascunhos de forma geral.
Piglia lembra que se pode escrever ótimos manuscritos e péssimos textos finais. Talvez nunca venhamos a conhecer o texto final de Tarântula, mas seu “rascunho”, a meu ver, já lhe garante um lugar especial na literatura.
Embora Bob Dylan tenha considerado Tarântula um romance, ele é um livro híbrido, composto de uma série de contos, uma ópera, um poema, uma fábula etc., que tratam sobre assuntos cotidianos diversos: “‘feliz ano-novo, elmer & como vai sua esposa, cecile’ & isso garantiu que eles entrassem na festa... lá dentro, Burt ficou zangado com um palito de dentes na nuca olhando o médico & embora o carteado por si só fosse sensacional, a Moça Flor perdeu a camisa”.
O cotidiano de Dylan, no entanto, é entremeado de um discurso político, que reflete as preocupações e os anseios do final dos anos 1960, mas ainda bastante atual nos dias de hoje: “fiquei bebum demais noite passada. devo ter bebido/ demais. acordei hoje de manhã com/ a cabeça na liberdade & minha cabeça que parecia/ a polpa de uma ameixa... estou planejando/ discursar hoje sobre a brutalidade policial. venha se você conseguir escapar”. Ou: “todos sabem de sobra a essa altura que as causas das guerras são grana & ganância & instituições filantrópicas/ a dona de casa não está. ela é candidata ao congresso”.
Dylan também se vale, para compor seu livro, de mistura de línguas, como em Incorrigível e Maria Lugar Nenhum – MARIA POR QUÉ LLORAS? & eu te dou minhas doze meias-noite –; e de onomatopeias, de sons de guitarra, como se quisesse acompanhar com ela as palavras do texto: “broa betty, ébano diabrete ba-ba-blam, ba-bam! bandida teve um bebê ba-ba-blam, ba-ba-blam!”.
Tarântula é composto também de um emaranhado de citações e referências que sempre fazem o tradutor se perguntar, como o fez Rogério Galindo, se valeria à pena ou não colocar uma nota em cada uma delas.
Vale ressaltar que muitos contos vêm acompanhados de uma carta, assinada por diferentes remetentes ao longo do livro. A linguagem das cartas é clara e seus autores parecem trazer à tona a sua versão dos fatos ali narrados.
*É autora do livro 'Ascensão: Contos Dramáticos', da editora Armazém
Tarântula Autor: Bob DylanTradução: Rogério GalindoEditora: Planeta 136 páginas R$ 36,90
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.