A inquietação, fomentada por uma persistente insatisfação, era o principal combustível criativo de José Celso Martinez Corrêa, que morreu nesta quinta-feira, 6, aos 86 anos. E, como nos anos 1960, quando ele começou, os projetos pessoais se confundiam com os coletivos, era normal que sua arte fosse essencialmente política.
Entre diversos trabalhos, Zé Celso poderia ser imortalizado por apenas um, a montagem de O Rei da Vela, em 1967, a partir do original de Oswald de Andrade. Fiel adepto do teatro ritualizado, o encenador dialogou na época com outras duas obras-primas, o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, e as músicas de Caetano Veloso, em especial Alegria, Alegria e Tropicália.
É pouco provável que os três artistas tivessem trocado ideias estéticas, mas o fato é que os três refletiram com incrível visão estética a desintegração política e social sofrida pelo Brasil no auge do regime militar.
E Zé Celso apostou no que seria o fio condutor de seu trabalho a partir de então, ou seja, um teatro em que a existência e a sexualidade ocupavam tanto o plano da discussão como o da ação cênica. A fim de driblar a censura, a alegoria tornou-se obrigatória, não apenas no jogo de palavras, mas também na atuação, cada vez mais carnavalizada no sentido da preponderância da festa da carne.
Ao longo dos anos, o teatro de Zé Celso tornou-se mais bacante – no qual o fato de se estar vivo é motivo de sobra para celebração. E também mais explícito, como se o pudor representasse alguma forma de censura. No centro de tudo, sempre o ator libertário – para ele, a qualidade de corpo ardente é tão essencial para a arte do ator quanto a disciplinada consciência do ofício. Assim, ao mesmo tempo em que afastava o espectador tradicional, Zé Celso atraía jovens interessados na forma despudorada, mas repleta de símbolos, com que criticava a violência social sofrida pelos mais humildes.
Zé Celso tornou-se um dos poucos diretores brasileiros com a capacidade de criar ilusões sempre eloquentes, em que festas regadas a vinho e cantoria significam uma exaltação ao corpo, entendido sempre como algo coletivo que guarda e revela as marcas da cultura.
Era um homem verborrágico, que não se contentava em transmitir suas ideias apenas pela palavra, que era obrigatoriamente completada por gestos coreográficos e inesperadas inserções musicais. Como grande artista, sabia como poucos transgredir as regras.
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