Conheça a bailarina Dandara Caetano: Do início em projeto social a estrela do balé ‘O Quebra-Nozes’

Primeira mulher negra a ocupar o posto principal de um balé de repertório completo da São Paulo Companhia de Dança, ela conta sua trajetória enquanto Inês Bogéa, diretora artística do grupo, destaca sua dança: ‘Pura paixão e exuberância’; veja ainda destaques da temporada 2025

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Por Amanda Queirós

Vega é a estrela mais brilhante da constelação de Lira. Quando a viu, a coreógrafa Márcia Haydée ficou tão impactada que a transformou em personagem de balé. Em O Quebra-Nozes no Mundo dos Sonhos, sua versão para o clássico natalino, encenada pela São Paulo Companhia de Dança (SPCD), ela é quem ocupa o lugar da tradicional Fada Açucarada.

Na atual temporada da obra, em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso até domingo, 15, a Estrela Vega ganha o impulso de uma nova intérprete - e sua presença em cena surge carregada de significados. Aos 28 anos, Dandara Caetano é a primeira mulher negra a ocupar o posto principal de um balé de repertório completo desde a fundação da companhia, pelo governo do Estado de São Paulo, em 2008.

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Responsável pelo clímax da peça, o papel cai bem à jovem de sorriso largo e muita energia. “Mas, na minha cabeça, isso nunca ia acontecer”, confessa a artista paulistana. No Brasil, ainda são poucos os conjuntos profissionais que dançam os grandes clássicos. A consistência demonstrada por ela desde a entrada no grupo, três anos atrás, a fez se destacar. “Aqui tem muito do meu esforço, da minha força de vontade, do meu interesse e da minha luta.”

A história poderia ter sido outra caso Dandara tivesse insistido no seu verdadeiro interesse de infância: a ginástica artística. Foi a irmã mais velha quem a puxou para a dança.

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Os primeiros passos vieram aos quatro anos, em um projeto social hoje conhecido como Balé Jovem de São Vicente, no litoral paulista. No início, tudo pareceu monótono. Com as apresentações e as coreografias, veio o interesse. “Desde pequena, ela era muito talentosa, longilínea, inteligente. Tinha maturidade para além de sua idade e era sempre dedicada”, afirma a professora Geyssa Alencar.

A partir desse momento, a vida da menina passou a girar em torno do balé. Pela manhã, estudava as técnicas; à tarde, ia para a escola; à noite, retornava ao estúdio para ensaiar. Na adolescência, começou a participar de competições dentro e fora do País.

Dandara Caetano sobe ao palco no sábado, no 'Quebra Nozes' da São Paulo Companhia de Dança Foto: Taba Benedicto/ Estadão

Os custos com figurinos, sapatilhas e passagens provocaram mudanças em casa. As irmãs trocaram o colégio particular pelo público, e o carro da família foi vendido para bancar as despesas. “Sempre que eu pensava em desistir, meu pai dizia: mas não é isso que você quer? Tanto ele quanto minha mãe sempre me apoiaram muito”, lembra Dandara.

Zulmiro morreu há cinco anos, e Patrícia, há um ano e meio. “Todo dia acordo e falo: hoje é por mim e pela luta que a gente teve. Sempre dedico meus espetáculos a eles.”

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A ausência dos pais aprofundou a relação com a irmã Bruna, a maior incentivadora de sua audição para a São Paulo Companhia de Dança. A seleção aconteceu durante a pandemia de covid-19.

Por conta das restrições sanitárias, o processo teve fases remotas. “Pessoas de diferentes partes do Brasil puderam participar sem o custo de vir até São Paulo. Nesse sentido, a gente pôde descobrir talentos diversos”, explica a diretora artística Inês Bogéa.

A iniciativa deu tão certo que o formato foi mantido mesmo após o fim do isolamento social. Hoje o percentual de bailarinos autodeclarados pretos e pardos na companhia ultrapassa o de brancos. O número espelha a distribuição racial do Brasil, onde 55,5% da população se identifica como negra, segundo o Censo de 2022.

“Ter essa representatividade no palco traz uma conexão muito importante com a plateia, porque cria possibilidades de você se ver no palco”, completa Inês, que descreve a dança de Dandara como “pura paixão e exuberância”.

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‘Não venci sozinha’

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Ser uma referência é combustível para a bailarina. “Eu não venci sozinha. Estou aqui, mas tem muita gente comigo.” Antes dela, outras artistas tatearam esse lugar dentro da SPCD. Nayla Ramos protagonizou o clássico Suíte de Paquita em apresentações nas Fábricas de Cultura, na periferia de São Paulo, enquanto Gabrielly Juvêncio se revezou no duo contemporâneo Pássaro de Fogo durante turnês internacionais recentes.

Chegar até o topo, no entanto, envolveu percalços. Não raro, em concursos, a artista foi pressionada a usar meias e sapatilhas de cor rosa, uma herança das origens europeias do balé, o que não favorecia suas linhas.

“Historicamente, a dança clássica foi dominada por padrões estéticos que não consideram ou valorizam a diversidade racial e de corpos”, afirma a carioca Ingrid Silva, estrela da companhia norte-americana Dance Theatre of Harlem. Em 2012, ela viralizou ao mostrar como tingia as sapatilhas no tom de sua pele. Hoje é uma importante voz de defesa da diversidade na dança.

“Por muito tempo, a ausência de pessoas negras, especialmente mulheres, em papéis de destaque reforçou a ideia de que o balé, assim como a sociedade, não era um espaço inclusivo. Por isso, escolas e companhias precisam se reestruturar cada vez mais, indo além das questões de cor de pele e gênero, para reconhecer e valorizar o talento único de cada bailarino.”

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Dandara Caetano participou da seleção para a São Paulo Companhia de Dança durante a pandemia de covid-19. Foto: Taba Benedicto/ Estadão

O mineiro Mateus Rocha faz coro com a colega. “Baryshnikov e Nureyev eram totalmente diferentes um do outro. Ninguém esperava que fizessem a mesma coisa”, diz, referindo-se aos astros do balé russo do século 20.

Seu tio, Bruno Rocha, foi o primeiro negro a dançar um grand pas de deux no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A inspiração o fez buscar seu lugar nessa arte, estudando no Conservatório Harid, uma das mais prestigiadas escolas dos Estados Unidos. Desde 2018, ele figura como príncipe em balés da SPCD, como o próprio Quebra-Nozes. Agora, é sua vez de inspirar outros rapazes. “A gente vai puxando as pessoas. Temos vários talentos no Brasil e me orgulha saber que a gente tem espaço. Minha luta como artista é essa.”

Rocha trilha um caminho aberto por Nielson Souza. Em 2013, o baiano se surpreendeu ao ver o próprio nome indicado como protagonista de Romeu e Julieta, de Giovanni Di Palma. Em seu início na dança, ele se inclinou mais para o estilo contemporâneo por intuir que, talvez, não coubesse no clássico. “Depois entendi que, se tinha sido escolhido, tinha nível suficiente”, lembra ele, que é atualmente um dos principais solistas da SPCD, mantendo-se em evidência como Rei dos Ratos e na Dança dos Astros, um solo criado especialmente para ele por Márcia Haydée.

Hoje Dandara tem orgulho de se afirmar como profissional da dança. Como parte da companhia, transita entre palcos do exterior ao interior de São Paulo. Dedica-se diariamente a seis horas de aulas e ensaios. Fora do expediente, fortalece ainda o corpo com musculação. Com isso, dá conta de diferentes personagens. Este ano, foi solista na remontagem de Ana Botafogo para Les Sylphides e, na atual temporada, se reveza com Thamiris Prata e Carolina Pegurelli no papel principal, que ela apresenta na tarde deste sábado, 14, para uma plateia com ingressos esgotados.

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“Sofri muito até entender que a minha cor não tinha nada a ver com nada. Eu tinha que ser eu. Fazer a Estrela Vega é um presente, e vou continuar lutando por isso, para fazer outros papéis em outros balés”, diz, evocando uma frase de Geyssa, sua professora, quando as coisas não saiam como o previsto. “Ela sempre dizia: agora você está recebendo um não, mas você vai ser um sim. E hoje eu sou um sim na história.”

O Quebra-Nozes no Mundo dos Sonhos, com São Paulo Companhia de Dança

  • Teatro Sérgio Cardoso (Rua Rui Barbosa, 153)
  • Sex., às 20h. Sáb., às 16h e às 20h. Dom., às 16h.
  • Ingressos esgotados

Temporada de 2025 da São Paulo Companhia de Dança terá influência hispânica e balé infantil com Osesp

Enquanto se despede de 2024, a São Paulo Companhia de Dança anuncia sua temporada para o próximo ano, intitulada Todos os Mundos em Nós. A ideia veio de um poema de Adélia Prado. “Ela fala da fragilidade humana, sua vulnerabilidade, da possibilidade de a gente se reconhecer nas nossas dores, mas também nas alegrias, que são muito potentes”, afirma Inês Bogéa, diretora artística do grupo.

Ao longo do ano, isso se traduz em novas criações contemporâneas do coreógrafo cubano George Céspedes, o espanhol Carlo Pons Guerra e o casal Denise Namura e Michel Bugdahn - ela brasileira, ele alemão, ambos radicados na França.

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A influência hispânica está também na remontagem de Suíte de Dom Quixote, de Márcia Haydée, a ser apresentada com orquestra no Theatro São Pedro. O repertório de clássicos é reforçado ainda pelo segundo ato de O Lago dos Cisnes, de Mario Galizzi, e Les Sylphides, de Ana Botafogo.

Além disso, o grupo estreia um balé infantil encenado com a Osesp, na Sala São Paulo, e duas novas coreografias montadas por artistas selecionados via edital. “Isso possibilita ampliar o diálogo com quem não pensava em criar para a companhia”, diz a diretora.

A renovação de assinaturas para a temporada começa já nesta segunda-feira, dia 16. Novos pacotes poderão ser adquiridos a partir de 28 de janeiro.

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