Quando assistiram ao espetáculo The Inheritance, em Londres, em 2019, o ator Bruno Fagundes e o diretor Zé Henrique de Paula vivenciaram uma experiência de pura catarse. “A peça é longa e tem vários intervalos”, relembra Zé Henrique. “No primeiro, as pessoas só se olhavam. No segundo, havia cumprimentos; no último, desconhecidos se abraçavam, emocionados.” Empolgados, ator e diretor decidiram produzir uma montagem no Brasil e, assim, A Herança estreia nesta quinta, 9, no Teatro Vivo.
Escrita pelo americano de origem porto-riquenha Matthew Lopez, a peça traça um monumental painel a partir da relação entre amigos gays, que unem suas histórias geracionais, traçando um painel entre a experiência vivida pela humanidade nos anos 1980, quando surgiu o vírus da aids, até os dias atuais e as consequências daquele período sombrio e mortal. Detalhe: a montagem se divide em duas partes, cada uma com 2h30 de duração - enquanto a primeira estreia nesta quinta, a segunda entra em cartaz no dia 24 de março. E haverá dois dias (8 e 22 de abril) em que as duas partes serão exibidas seguidamente.
Maratona
Não se deve, porém, desanimar diante de tal maratona - A Herança tornou-se, com o tempo, um dos principais espetáculos da Inglaterra e dos EUA, onde recebeu quatro prêmios Tony, o Oscar do teatro americano. A história é compulsivamente envolvente e acompanha Eric (Fagundes) que, prestes a ser despejado de seu apartamento, se aproxima de Walter (Marco Antônio Pâmio) e Henry (Reynaldo Gianecchini) na tentativa de se acertar, ao mesmo tempo que naufraga sua relação com o escritor Toby (Rafael Primot), cuja carreira começa a decolar.
Peça debate os erros com a aids nos anos 1980
Os ensaios da peça A Herança exigiram tempo e preparo psicológico do elenco. “O texto é muito bem estruturado em um total de 89 cenas e mantém a atenção ao mostrar uma herança amarga que nós, pessoas do século 21, carregamos a partir das omissões e das atitudes erradas tomadas nos anos 1980″, comenta Bruno Fagundes. E o autor constrói essa estrutura a partir de sua interpretação do romance Howards End, de E.M. Forster (1879-1970), usando três gerações de homossexuais nova-iorquinos para explorar a classe, a comunidade e o legado do HIV.
“Ao escrever A Herança, eu queria tomar meu romance favorito e recontá-lo de uma forma que seu autor nunca se sentiu livre para fazer em vida”, escreveu Matthew Lopez, em artigo ao New York Times.
“A peça, na verdade, nos coloca em estado de atenção e Walter, meu personagem, promove um elo entre as gerações”, atesta Marco Antônio Pâmio. De fato, no auge da mortandade provocada pelo vírus da aids nos anos 1980, Walter transformou sua casa de campo em abrigo para os infectados, atitude humanitária quando a maioria das pessoas evitava o convívio. “Ele conta isso a Eric, que se torna seu herdeiro espiritual e também de posses, deixando para o rapaz a casa de campo.”
Se soluciona a questão da moradia (Eric está para ser despejado), a atitude provoca outro problema, pois a propriedade, de uma certa forma, também pertence a Henry, que foi companheiro de Walter. “É um personagem surpreendente, de atitudes inusitadas - basta notar que é um homossexual que apoia o Partido Republicano americano”, comenta Gianecchini, que só entra em cena depois de vários minutos de peça. “A política é parte natural da narrativa, é como se falássemos do Brasil atual.”
Trump
A eleição de Donald Trump, aliás, é um dos grandes momentos da peça, e logo torna evidente o tipo de capitalismo implacável praticado por Henry. A Herança traz personagens de uma teatralidade selvagem, mas a humanidade da performance do elenco confere à produção um brilho espiritual. “Há uma compreensão da natureza humana, com todas as suas falhas”, diz Zé Henrique que, para o único papel feminino, convidou uma dama do teatro, Miriam Mehler. Ela transmite a comovente dor da mãe que transformou o fracasso em aceitar o filho gay quando ele mais precisava dela em um serviço para os outros.
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