Entre 1968 e 1974, o diretor Jorge Takla morou em Paris e, para ele, esse período representou a consolidação de sua formação intelectual. Por lá, o jovem libanês, bilíngue em árabe e francês desde a infância, estudou arquitetura e frequentou o Conservatório Nacional de Arte Dramática antes de passar uma temporada em Nova York e fixar residência em São Paulo, em 1977. Takla, por décadas a fio, imaginou um espetáculo inspirado nessa bagagem europeia, algo que traduzisse sua visão de uma efervescência que ronda o imaginário coletivo. Foi deixando para depois, o tempo passando e nada, até que veio a provocação do coreógrafo Anselmo Zolla.
O diretor artístico da Studio 3 Cia. de Dança chamou o encenador para iniciar um processo em setembro do ano passado. Os dois se conhecem desde 2008, e Zolla, inclusive, coreografou o musical Jesus Cristo Superstar e as óperas Rigoletto e Sonho de uma Noite de Verão, dirigidos por Takla. A proposta era os dois se trancarem em uma sala de ensaios por cinco meses junto aos bailarinos da Studio 3 e, com base em pesquisas, levantar do zero uma montagem sem um assunto determinado. Takla, ainda abalado pelo jejum artístico forçado pela pandemia, se jogou no processo com o entusiasmo de quem vasculha as próprias memórias e, inspirado, reencontrou a valorização da própria trajetória. “A Paris da minha juventude ainda era próxima dessa história porque alguns personagens continuavam lá vivos e produzindo.”
O resultado não podia ganhar outro título. O espetáculo de teatro-dança Paris, encenação de Takla coreografada por Zolla, estreia nesta segunda, 27, às 20h, em apresentação única no Teatro Municipal. Em março, outras seis datas estão agendadas no Auditório do Masp, a partir da segunda semana. Treze bailarinos – sete mulheres e seis homens – evocam celebridades que viveram na capital francesa nos anos de 1920, entre eles o pintor Pablo Picasso, a cantora Josephine Baker, a atriz Marlene Dietrich, os compositores Cole Porter e Igor Stravinski e os dançarinos Vaslav Nijinsky e Isadora Duncan.
Chanel
Dois outros personagens, no entanto, conduzem a dramaturgia e se transformam no eixo por onde todos orbitam para mostrar relações criativas e íntimas: a estilista Gabrielle Chanel e o poeta e bailarino Boris Kochno (representados respectivamente por Vera Lafer e André Neri). “São artistas que fizeram cultura em um período de adversidades políticas, todos caíam ou, melhor, despencavam para se levantarem mais fortes ainda”, justifica o diretor. “Enxerguei uma relação direta com esse momento recente do Brasil em que aqueles que fazem arte viraram alvo de preconceito e lutaram contra uma crise sanitária e uma guerra camuflada.”
Fontes
Segundo Takla, as patrulhas já começaram e ele chegou a ser acusado nas redes sociais de criar uma montagem colonizadora e voltada aos interesses do público branco. Zolla ouviu de colegas mais radicais que Paris propõe uma discussão desconectada dos nossos tempos e da cultura brasileira. O coreógrafo trata de responder que esses mesmos críticos não assumem que beberam em fontes semelhantes e que a recriação de temas é tão importante quanto a busca por pautas inéditas desde que tragam diferentes leituras. “Os artistas que pontuamos são universais e precisam ser conhecidos por todos até porque muitos só ouviram falar de Chanel por causa da bolsa, não é?”, ironiza o coreógrafo.
Zolla rejeita qualquer compromisso com o realismo e não se deve esperar que os personagens sejam reproduzidos no palco com semelhanças físicas ou trejeitos óbvios. “Jamais teria a pretensão de encontrar uma nova Josephine Baker ou uma Marlene Dietrich andando por São Paulo”, avisa. “O que importa é como essas pessoas brilhantes foram traduzidas por uma companhia que não deseja só mostrar juventude e movimentos pulsantes, mas principalmente a expressão perfeita de cada bailarino”, completa.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.