Fernanda Montenegro: “Caminhamos, mas homens ainda surram e matam ‘suas mulheres’”

Atriz de 94 anos se prepara para estrear a leitura dramática de ‘A Cerimônia do Adeus’, de Simone de Beauvoir, no Sesc 14 Bis. Ao ‘Estadão’, ela afirma que pensamento da filósofa ainda ‘assusta’ e critica a reeleição do sistema eleitoral brasileiro

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Foto: Eduardo Nicolau/ Estadão
Entrevista comFernanda MontenegroAtriz e escritora

Conhecida por interpretações marcantes, Fernanda Montenegro aposta agora no minimalismo: bastam apenas seus óculos, uma mesa e uma cadeira para ela encenar seu mais recente espetáculo, em que lê trechos da obra Cerimônia do Adeus, da filósofa Simone de Beauvoir (1908-1986). A atriz de 94 anos limita os movimentos para concentrar na fala a narração de uma série de reflexões sobre a obra de 1981 em que a francesa faz um doloroso relato sobre os últimos anos de sua convivência com o também filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980).

É seguindo essa fórmula que se desenvolve Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir, espetáculo (ela prefere chamar de “leitura dramática”) que estreia no Teatro Raul Cortez, do Sesc 14 Bis, em 20 de junho. Ela praticamente não se movimenta, modulando a voz para que as ideias de Simone se espalhem pela sala. Um único facho de luz a ilumina, destacando seu figurino mas, sobretudo, os grandes e hipnotizantes olhos.

Ingressos para Fernanda Montenegro no Sesc

Os ingressos para Fernanda Montenegro Lê Simone de Beauvoir se esgotaram rapidamente na venda online, no dia 11, e na venda presencial, no dia 12. O Sesc registrou mais de 130 mil acessos simultâneos em seu site e enormes filas em suas unidades. Foram vendidos, ao todo, 10 mil ingressos para os 20 dias de apresentação.

Fernanda Montenegro e Simone de Beauvoir

Nascida em Paris, Simone de Beauvoir estudou matemática e literatura até ingressar no curso de filosofia na Sorbonne. Lá, conheceu outros jovens intelectuais, como Maurice Merleau-Ponty, René Maheu e Sartre, grupo com o qual logo se uniu estreitamente, criando uma relação aberta, a ponto de permitir compatibilizar liberdades individuais com vida em conjunto.

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Isso também influenciou sua obra - no primeiro romance, A Convidada (1943), explorou os dilemas existencialistas da liberdade, da ação e da responsabilidade individual. Já os ensaios críticos de O Segundo Sexo (1949) trazem uma profunda análise sobre o papel das mulheres na sociedade.

Fernanda se aproximou do pensamento feminista de Simone quando estava com 20 anos, mas a ideia de montar o espetáculo veio bem depois. Em 2007, aconselhada pelo ator e amigo Sergio Britto, ela organizou trechos de Cerimônia do Adeus, que inspiraram a peça Viver Sem Tempos Mortos, estreada em 2009 com direção de Felipe Hirsch.

'Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir', no Sesc 14 Bis a partir de 20 de junho. Foto: Sesc/Divulgação

A montagem que estreia agora tem trechos de outras obras pois, ao ler Simone de Beauvoir no palco, Fernanda acredita que as pessoas podem se conscientizar da liberdade que a filósofa se impôs e propôs a todas as gerações que a sucederam. “Seu discurso existencial assusta tanto que ainda estamos longe de sua completa realização existencial”, diz ela na seguinte entrevista, realizada por e-mail. Fernanda aproveitou para reforçar também sua crítica à reeleição que marca o sistema eleitoral brasileiro, já tachado por ela como uma “deformação política”.

Ainda hoje se discute o papel das mulheres na sociedade. As ideias de Simone de Beauvoir eram avançadas demais ou o mundo não evoluiu como deveria nessas últimas décadas?

Já existem, hoje, homens que se completam com a mulher. Digo de igual para igual. É necessário reconhecer que caminhamos. Mas, homens ainda surram “suas mulheres”. Homens ainda matam “suas mulheres”.

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Simone disse uma frase que se tornou emblemática: “Ninguém nasce mulher, mas se torna uma”. A senhora acredita que esse pensamento ainda é válido? Por que?

O que Beauvoir propõe é a descolonização. Diz ela: “Nós, mulheres, somos colonizadas por dentro”.

Aliás, o discurso existencial de Simone de Beauvoir ainda pode assustar?

Assusta tanto que ainda estamos longe de sua completa realização existencial.

A partir do seu entendimento do pensamento de Simone, é possível dizer que sua atitude hoje é mais feminina que feminista?

Penso que Simone de Beauvoir jamais quis tirar da feminista o feminino. “Vivi num mundo de homens, guardando em mim o melhor da minha feminilidade”.

Eu me propus e dei conta de organizar, dentro do que o tempo teatral solicita, a compilação do texto de Viver Sem Tempos Mortos, extraído de A Cerimônia do Adeus, estreado em 2009 e representado até maio de 2012. Na Academia Brasileira de Letras, em 2023, após 11 anos dessa encenação, propus e li a A Cerimônia do Adeus, com acréscimos de alguns outros trechos do pensamento dessa feminista referencial.

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Essa leitura seguiu para o Teatro Poeira com surpreendente aceitação de plateias lotadas. O mesmo fenômeno de presença de público aconteceu no Teatro Prio e no Teatro Casa Grande, de 900 lugares, lotado nas 14 apresentações. Comprovamos a possibilidade de dar sequência a essa leitura que o acaso o fez com absoluta aceitação. Esse mesmo resultado acontece nas leituras de Nelson Rodrigues Por Ele Mesmo, texto organizado também por mim, já apresentado em diversas cidades deste País. Vivo essa experiência com absoluta e honesta surpresa.

Em cena, a senhora praticamente não se movimenta, modulando a voz para que as ideias de Simone se espalhem pela sala, se transformando em vida e alusão. Limitar os movimentos ainda é a melhor forma de compartilhar o pensamento de Simone?

Observo um silêncio absoluto. Uma atenção racional e emocional que sempre me comove ao se acender a luz daquela sala. Vejo a aceitação plena do que foi proposto do palco para a plateia, da plateia para o palco.

‘Viver Sem Tempos Mortos’ estreou em 2009 e, desde então, o Brasil passou por muitas mudanças, desde um impeachment até um governo alinhado à direita. Na sua avaliação, como era o País há 15 anos e qual é hoje?

Há 15 anos, éramos um País de esperança ativa. Hoje, somos colonizados por nós mesmos. A reeleição estrangulou o nosso País.

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Fernanda Montenegro lê Simone de Beauvoir

  • Quando: De 20/6 a 21/7. Quintas a sábados, 20h; domingos, 18h
  • Classificação indicativa: 12 anos | Duração: 75 minutos
  • Local: Sesc 14 Bis (Teatro Raul Cortez, 2º andar) - R. Dr. Plínio Barreto, 285, Bela Vista.
  • Ingressos esgotados
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