Fernanda Montenegro completa 95 anos no próximo dia 16 de outubro. Mas, segundo ela, o presente chegou antecipadamente no último domingo, 18, em uma noite sem precedentes em suas oito décadas como atriz.
Cerca de 15 mil pessoas se reuniram na área externa do Auditório Ibirapuera, em São Paulo, para vê-la ler textos inspirados na obra A Cerimônia do Adeus, da filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-86). Gratuita, a apresentação patrocinada pelo banco Itaú foi, na verdade, uma transmissão da leitura dramática que ocorria em tempo real para pouco mais de 700 espectadores dentro da sala de espetáculos. “Esse acolhimento é um presente de aniversário”, disse, sob aplausos, logo após a cortina do lado de dentro se abrir, às 19h30.
A movimentação para prestigiar a veterana foi equivalente à de grandes festivais de música. Às 17h, quando os portões foram abertos, duas imensas filas serpenteavam o parque até os acessos, provocando uma demora média de 30 minutos até o espaço liberado para o público. No horário previsto para o início, às 19h, muitos ainda esperavam sua vez de entrar.
Todos os ingressos disponíveis haviam sido distribuídos no início da semana passada, de modo online, e acabaram em poucos minutos. Quem não conseguiu bateu ponto mesmo assim, garantindo lugar fora das grades. Foi o caso do estudante Moisés Brito, 26. Como a projeção ocupou a parte superior dos fundos do auditório, ele conseguiu uma visão completa apesar da distância. “Fernanda é um ícone. Essa apresentação dela é como a da Madonna, no Rio. É uma experiência diferente vê-la assim, e não de forma presencial, mas isso é bom porque mais gente pode assistir”, disse.
Enquanto o espetáculo não começava, o gramado desaparecia debaixo de um mar de cangas e toalhas. Sentadas sobre elas, centenas de pessoas tiravam selfies com um retrato gigante da atriz exibido acima do palco, fazendo jus a seu apelido de “Fernandona”. Com câmeras e microfones a postos, uma equipe de vídeo registrava imagens para um documentário sobre a artista, que terá direção de Pedro Waddington.
Após escurecer, amigos tentavam se encontrar com as lanternas acesas do celular. Ambulantes driblavam os amontoados de gente e ofereciam vinho para harmonizar com a lua cheia e o clima ameno. Clientes do patrocinador se enfileiravam para ganhar mantas de cor laranja.
A psicóloga Fernanda Rigon, 64, já havia assistido à apresentação da xará durante uma concorrida temporada no Sesc 14 Bis, ocorrida entre junho e julho, que teve seus 10 mil ingressos igualmente esgotados rapidamente. “Foi um dos momentos mais sublimes da minha vida”, lembrou ela, que fez questão de repetir a dose com as amigas. “Aqui tem gente de todas as idades. É um privilégio ver esse encontro de gerações. Isso prova o quanto o brasileiro clama por esse tipo de ação.”
Perto dela, um grupo cantava “parabéns a você” com direito a bolo e vela. A farmacêutica Naiana Fernandes Silva escolheu comemorar ali seus 36 anos. Entre irmãs e amigas, as convidadas a sua volta eram todas mulheres. “Achei que tinha tudo a ver”, afirmou ela, referindo-se ao fato de Simone de Beauvoir ser um ícone da luta do movimento feminista.
Esse aspecto foi saudado por Fernanda Torres, filha de Montenegro. Pouco antes do início, a também atriz subiu ao palco externo para explicar o fascínio da mãe com a filósofa desde que a leu, pela primeira vez, aos 20 anos de idade. “Este é um encontro de duas grandes mulheres, em uma obra que fala, acima de tudo, sobre liberdade e o impacto dela nas nossas vidas”, disse.
Se na primeira aparição da protagonista foi irresistível para a maioria tirar uma foto, logo os aparelhos foram guardados. A transmissão ora a mostrava sentada em uma mesa, ora dava closes em seu rosto ou revelava suas mãos passando as páginas, em imagens em preto e branco. Um clima de concentração pairou sobre a plateia, que reagia com risos e palmas às nuances do texto narrado em primeira pessoa. Quando a atriz citou o livro O Segundo Sexo, uma das obras mais emblemáticas de Beauvoir, choveram assovios e gritos de aprovação.
As últimas frases do monólogo ressoam especialmente pelo paralelo com a trajetória da própria atriz e os motivos que a levaram a revisitar a autora francesa 15 anos depois de tê-la encenado em uma peça dirigida por Felipe Hirsch. “Não sou escrava do meu passado. O que sempre quis foi comunicar da maneira mais direta o sabor da minha vida. Eu acredito que consegui fazê-lo. Não desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.” Se antes ela refletia sobre o luto a partir da perda do marido, o ator Fernando Torres (1927-2008), como Beauvoir refletia sobre os tempos finais de Jean-Paul Sartre (1905-1980), agora provoca o público a pensar sobre a passagem do tempo e o envelhecimento.
Quando a leitura chegou ao fim, o portão do fundo do palco foi aberto. Ao se virar e ver a multidão presente ao ar livre, a atriz levou a mão ao rosto, demonstrando surpresa. Com os olhos marejados, repetiu: “Esta é minha grande festa de aniversário!”
Por dez minutos, recebeu aplausos enquanto falava de sua relação com São Paulo e exaltava a força do teatro. “Eu estava muito tensa e ansiosa para dar conta dessa leitura. Por mais que eu agradeça, não há como corresponder à emoção desse momento”, disse ao lado da filha, que se juntou para os cumprimentos finais.
Na plateia, o sentimento era recíproco. Mesmo com o portão do palco já fechado e as luzes acesas, um certo maravilhamento seguiu ecoando. Por todos os cantos, ouvia-se a mesma expressão: “Foi emocionante!”. Entre lágrimas, sorrisos e abraços, Fernanda Montenegro pode ter certeza de que foi isso e muito mais.
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