O ator carioca Henri Pagnoncelli, de 69 anos, sentiu-se profundamente gratificado na saída de uma sessão do seu monólogo Caim, em setembro, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. Um casal, de 30 e poucos anos, cumprimentou-o e, identificando-se como evangélico, agradeceu a chance de refletir sobre questões provocativas, inclusive religiosas, depois de assistir à peça. “O Brasil atravessa um momento em que é praticamente proibido pensar, discordar, então fico feliz ao ver as palavras de Saramago estimulando avaliações sobre nossas motivações”, afirma.
Caim é uma adaptação da dramaturga Teresa Frota para o romance homônimo, publicado em 2009 pelo escritor português José Saramago (1922-2010), o último de sua extensa e significativa obra. Contrariando o determinismo religioso, o Nobel de Literatura criou uma visão laica sobre um dos filhos de Adão e Eva, o primeiro fratricida da História, que narra, sob o seu ponto de vista, a rivalidade com Abel e suas andanças pelo mundo depois de ter assassinado o irmão. Na visão de Saramago, Deus decide livrá-lo de um destino trágico e lhe dá chance de recontar a própria trajetória.
Maduro
Sob a direção de Jacyan Castilho, a montagem chegou ao Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo. O Caim de Pagnoncelli é um homem maduro que revisita episódios do Velho Testamento sem abandonar a ironia e o senso crítico. Pronto para desafiar aqueles que seguem os dogmas sem questionamentos, o personagem mexe com diretrizes que ditam o comportamento no mundo ocidental.
Pagnoncelli, no entanto, apressa-se em avisar que não é uma peça sobre religião e ou teorias bíblicas. “Saramago instiga o público a repensar em quais ideias realmente acredita, porque muitas das regras que seguimos há dois mil anos foram inventadas por outros homens”, declara. O ator, que é católico por formação, mas se considera agnóstico, se sentiu tocado pela história desde que leu o romance logo depois do lançamento. Teresa, com quem é casado, também foi fisgada e prometeu que esboçaria uma dramaturgia. “Respondi que seria maluquice, não seria possível levar ao palco centenas de personagens e situações que rondam o imaginário de tanta gente”, lembra ele.
Por mais de cinco anos, Teresa trabalhou na adaptação e não ficou restrita aos enredos oferecidos pelo romance. Desenvolveu uma longa pesquisa e decupou horas de entrevistas de Saramago, de onde pinçou declarações do autor capazes de conectar os conflitos de Caim aos dias atuais. “Por meio das falas de Saramago, tratamos de guerras, governos totalitários e intolerâncias políticas e religiosas que podem nos remeter, por exemplo, à Ucrânia ou às discordâncias do Brasil”, adverte Pagnoncelli.
Monólogo
Em cinco décadas de carreira, é a segunda vez que o ator encara um monólogo. A primeira vez foi com Diário de um Louco, de Nikolai Gogol, em 1975, quando ainda cursava em paralelo a faculdade de Medicina. “Naquela época, percorri um grande circuito de escolas e universidades do interior do Rio”, relembra.
Para o artista, é hora de recuperar essa mentalidade – tanto que criou duas versões de Caim. Uma com cenário e iluminação especial será vista em teatros, como o do CCBB. E outra mais enxuta ocupará bibliotecas e pequenos auditórios. “É maravilhoso montar um espetáculo com dez, doze atores, mas não podemos parar diante desta impossibilidade, então temos que investir em solos que permitam uma circulação maior”, declara. Para 2023, seu plano é levar Caim a Lisboa, Porto, Braga e Évora, em Portugal.
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