Marco Nanini revê, em biografia, inspirações (Dercy), parcerias (Marília Pêra) e paixões (Wolf Maya)

Escrita por Mariana Filgueiras, obra inédita relembra grandes sucessos como a série ‘A Grande Família’ e a peça ‘O Mistério de Irma Vap’, além de intimidades como amores por homens e mulheres

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Foto do author Ubiratan Brasil
Atualização:

O avesso de um bordado, mesmo oculto por detrás do pano, traz significados que ajudam a entender melhor o próprio trabalho. Foi tal raciocínio que levou a escritora e jornalista Mariana Filgueiras a titular de O Avesso do Bordado a biografia do ator Marco Nanini, lançada agora pela Companhia das Letras. Fruto de quatro anos de pesquisa, entre entrevistas e consultas a documentos, a obra tem a qualidade de não se limitar a retratar a vida profissional de um dos principais artistas brasileiros, mas também a de revelar histórias íntimas e a contextualizar o ambiente onde cada fato aconteceu.

Marco Antônio Barroso Nanini, reconhecido como Marco Nanini, é um ator, autor, produtor teatral e dramaturgo brasileiro, com uma carreira proeminente no teatro, cinema e televisão, posa em sua casa na zona sul do Rio de Janeiro Foto: PEDRO KIRILOS

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Afinal, a trajetória de Nanini se confunde com a própria história da cena brasileira desde 1965, quando ele pisou em um palco pela primeira vez. “Nanini foi formado por gênios do teatro clássico, experimentou todas as linguagens e gêneros ligados à dramaturgia”, conta ela, relatando que o ator participou de mais de cem produções, passou pelo teatro clássico e moderno, pelo teatro político e de vanguarda e pelos musicais.

E, tal qual o avesso de um bordado, o livro traz informações pessoais e pouco conhecidas sobre o homem que, quando chega em casa, deixa para fora a persona pública – os namoros (de Marília Pêra a Wolf Maya), as grandes amizades (como Pedro Paulo Rangel e Camila Amado), uma inusitada cumplicidade (com Renato Russo) e ainda a família (seu pai Dante inspirou-lhe na criação de Lineu, de A Grande Família, tanto na correção de caráter como no uso do cinto acima da barriga).

Marco Nanini e Marieta Severo interpretaram Lineu e Nenê na série 'A Grande Família', entre 2001 e 2014 Foto: MARCOS D'PAULA

Há espaço também para relembrar a dependência de Mandrix, droga comum nos anos 1970 (e proibida na década seguinte) que, ao se associar ao álcool, provocava um verdadeiro transe. Nanini abandonou sedativo quando, sob seu efeito, desmaiou enquanto dirigia, quase provocando a própria morte.

“Havia muita história que eu mesmo não lembrava mais”, diverte-se Nanini, em conversa com o Estadão. “E, ainda que muita coisa ainda cause estranhamento, sei que não tenho nada a perder.” Próximo dos 75 anos (completa em 31 de maio), Nanini construiu uma carreira cuja excelência encontra poucos exemplos na história da arte dramática brasileira. Como observou Mariângela Alves de Lima, em crítica publicada no Estadão em 2011, “ele ultrapassa em larga medida a categoria de excelência profissional implícita em ‘bons intérpretes’”.

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Nascido em 1948 no Recife, Nanini viveu ainda em Manaus e Belo Horizonte (graças à função do pai, gerente de hotéis) até se fixar no Rio de Janeiro, onde estreou como ator em 1965, na peça infantil O Bruxo e a Rainha. O talento inato o levou ao Conservatório Nacional do Teatro, onde começou a lapidar suas inúmeras qualidades.

A aprendizagem coincidiu com a fase mais repressiva da ditadura militar. “Os anos de 1960 e 70 foram de muito sufoco. Todo dia, acontecia algo, a gente não podia ver uma farda sem ter medo”, relembra Nanini, que forjou seu talento na época a partir da convivência com artistas como Milton Carneiro, Dercy Gonçalves e Afonso Stuart, especialmente com a humorista. “Dercy tinha o sentido da comédia, o tempo do humor, a escolha certeira dos textos”, comenta. “E era muito briguenta, como quando xingou, durante uma apresentação, um censor que estava na plateia para acompanhar se o texto era dito na íntegra, quando Dercy era a rainha do improviso.”

Marco Nanini e Ney Latorraca em foto de 1989 da peça 'O Mistério de Irma Vap', dirigida por Marília Pêra e que ficou em cartaz entre 1986 e 1996 Foto: Flavio Colker

Outro nome essencial à lista é o de Marília Pêra (1943-2015), com quem Nanini talvez tenha mais se aproximado artisticamente. “O encontro artístico dessa dupla foi, de fato, explosivo. Uma harmonia notável, uma química perfeita, em palco, na TV, na vida privada. Tão intensa que não resistiu a vida inteira”, comenta Mariana, referindo-se ao enceramento da amizade depois de desentendimento por causa de O Mistério de Irma Vap, peça que bateu recorde de permanência em cartaz, entre 1986 e 96 – Nanini não aceitou uma proposta de Marília de substituí-lo em cena (ela dirigia o espetáculo) quando ele descobriu um nódulo nas cordas vocais.

Depois de muita discussão, encerraram a sociedade (da qual também fazia parte o ator Ney Latorraca) e, pior, a amizade. “Foi um encontro artístico único, que acabou por um desentendimento fatal”, resume ele.

Habitualmente reservado em relação à vida pessoal, Nanini conta histórias de seus amores no livro, tanto a breve relação com Marília, como com outros homens, como com o diretor Wolf Maya – eles moraram, junto com outros atores, na chamada República Resedá, nome inspirado na rua onde se localizava o imóvel com vários quartos.

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“Com Wolf Maya, a amizade fortalecida pelo ambiente doméstico virou paixão; a paixão virou um romance rápido e, antes que a magia da Resedá se desfizesse, o romance tornou a virar amizade”, escreve Mariana Filgueiras no livro, que lembra ainda um caso com um professor de balé.

Hoje, Nanini mantém há 36 anos um relacionamento com o produtor e diretor Fernando Libonati, com quem fundou a produtora Pequena Central. Depois de muito contornar, o ator fez a revelação sobre sua sexualidade em 2011, em entrevista à revista Bravo. “Eu tinha de dar um jeito de expor minha sexualidade, não podia ficar escondendo: primeiro, para meus pais; depois, de forma mais aberta”, comenta hoje.

Para festejar os 75 anos, Nanini não prevê nenhuma comemoração especial. O certo é que continuará trabalhando - no teatro, logo voltará com um texto que vem sendo escrito por Gerald Thomas, O Traidor, que também vai dirigir a montagem, ainda em previsão de estreia. “Gerald é um criador incansável, com muitas ideias e um enorme senso artístico para os espetáculos, especialmente na iluminação”, comenta Nanini, que trabalhou com Gerald em O Circo de Rins e Fígados (2005).

Ensaio da peça 'O Circo de Rins e Fígados', em 2055, com Marco Nanini e direção de Gerald Thomas. Foto: NIELS ANDREAS

Nanini poderá ser visto também no papel de João de Deus na série em três capítulos Os Últimos Dias em Abadiânia, de Marina Person, sobre o autoproclamado médium, que hoje responde por crimes de abuso sexual. Primeira produção internacional do Canal Brasil, a série deverá estrear no segundo semestre.

E, a partir de 2 de março, em sua terra natal Recife, Nanini retoma o projeto audiovisual As Cadeiras, filme rodado por Fernando Libonati a partir da peça de Eugène Ionesco e no qual o ator divide a cena com Camila Amado. A atriz morreu de câncer em 2021e só conseguiu ver o primeiro corte do filme. “É muito emocionante vê-la em cena em um projeto que levamos anos até realizar”, comenta Nanini que, incansável, não descarta mais um projeto teatral - Beckett, talvez.

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Cena do filme As Cadeiras, de Fernando Libonati, com Marco Nanini e Camila Amado Foto: Carlos Cabéra


Entrevista com Mariana Filgueiras

Em sua pesquisa e nas entrevistas que fez com Nanini, houve algum fato ou aspecto que tenha te surpreendido?

Sim, a gente tem a ilusão de que conhece um ator só pelos papeis mais populares, mas eu não fazia a menor ideia de que o Nanini era um ator tão completo. Ele foi formado por gênios do teatro clássico, experimentou todas as linguagens e gêneros ligados à dramaturgia. Eu não fazia ideia do trabalho minucioso que ele tinha na composição de cada personagem, a exemplo do Clark de Filhos de Kennedy, que deu a ele seu primeiro prêmio em 1977, e que exigiu dele um mergulho intenso para compor um ator fracassado, ressentido e alcoolatra da Off-Broadway. Cada personagem é um imenso bordado feito à mão, com avessos ora perfeitos, ora imperfeitos.

Entre seus inúmeros personagens, ele destacou, em conversa comigo, Emma, a menina da peça Pterodátilos (2011), que interpretou sem nenhum recurso de maquiagem. Terá sido ela o maior contraponto a Lineu, de A Grande Família, sucesso na mesma época e personagem marcado pela correção?

Entendo sua pergunta, mas não vejo a coleção de tipos de Nanini como uma mandala, em que um seja um vetor de contraponto do outro... Acho que Nanini tem um imenso baú de emoções humanas, por observar toda a gente ao seu redor, por se interessar em todo tipo de circunstância emocional do homem, e quando recebe um papel, vai até esse baú vasculhar, perseguir a emoção adequada até encontrar. Esse percurso envolve todo tipo d e experiência, o que faz com que ele tenha uma vida tão rica enquanto pesquisa para cada personagem. Emma o marcou muito pelo fato de a personagem ser muito diferente da imagem que o corpo dele provocava à época: ela, uma adolescente, ele, um sujeito envelhecido. Mas como a emoção da Emma foi encontrada perfeitamente, ninguém duvida que aquele senhor de cabelos brancos no palco seja uma adolescente. Uma das principais características do ator é justamente essa versatilidade; a velocidade com a qual pode encontrar, numa manhã, a emoção de Lineu, e à noite, no teatro, a emoção de Emma.

Cena da peça Pterodátilos, texto do americano Nicky Silver e direção de Felipe Hirsch, estrelado por Marco Nanini Foto: Carol Sachs

Você acredita que ele viveu e vive melhor no mundo do imaginário, de seus personagens, que no ambiente real?

Ótima pergunta. Mas acho que só ele saberia responder. Não tenho como fazer um juízo de valor a partir da subjetividade dele. A trajetória que eu narro me parece coalhada de fabulação sim, é a ficção que o alimenta, sem dúvida. A verdade, como se diz, só pode ser dita nas malhas da ficção... Mas se ele “vive melhor” desta forma, fabulando, criando tipos e cenas e trejeitos, só ele saberia dizer.

Entre tantas parcerias em cena, teria sido Marília Pêra a que mais o entendeu e com quem desenvolveu a mais simbiótica relação profissional?

Mais uma vez, acho difícil escalonar a importância de parcerias ou personalidades. Mas acredito que o encontro artístico dessa dupla foi, de fato, explosivo. Uma harmonia notável, uma química perfeita, em palco, na TV, na vida privada. Tão intensa que não resistiu a vida inteira.

Marília Pêra e Marco Nanini na novela Brega & Chique, de 1987 Foto: TV Globo'


Marco sempre foi reservado sobre sua vida particular, especialmente sobre sua sexualidade. Como foi tornar isso público e especialmente para seu livro, que traz mais detalhes?

Nunca foi um problema. Como Nanini sempre teve muita liberdade dos diretores para criar seus personagens, sempre valorizou a autonomia da autoria, acho que isso deu a ele muita tranquilidade e honestidade para valorizar a minha autonomia na escrita também. Ele sempre me disse: esse livro é seu, você é a autora, escreva a história da forma como achar melhor. E eu contei as histórias que achava importante para revelar a maneira pela qual ele transforma vida em linguagem. A sua experiência afetiva me interessava na medida em que ela construía o arcabouço emocional do artista, e nada além disso.

Capa do livro O Avesso do Bordado - Uma Biografia de Marco Nanini, de Mariana Filgueiras Foto: Companhia das Letras

O Avesso do Bordado - Uma Biografia de Marco Nanini

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Autora: Mariana Filgueiras

Editora: Companhia das Letras (344 páginas, R$ 119,90 (papel) e R$ 44,90 (e-book)

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