O palco fica na esquina das ruas Professor Laerte Ramos de Carvalho com Major Diogo, no bairro do Bixiga, embaixo e nas bordas do Viaduto Júlio de Mesquita. Sob o som de milhares de carros que cruzam diariamente a ligação de leste a oeste, e a poucos metros do histórico Teatro Oficina, uma peça está sendo encenada aos finais de semana pela Cia. Teatro Documentário.
Cavalo Bravo não se amansa é inspirada na conto de Clarice Lispector em que ela reflete sobre a história do bandido Mineirinho, morto por policiais com treze tiros no Estado do Rio de Janeiro, em 1º de maio de 1962. A escritora costumava citar o trabalho como um dos mais importantes em sua carreira. “No décimo terceiro tiro eu me transformo em Mineirinho”, ela dizia.
Para contar a história da peça, precisamos voltar no tempo e lembrar a criação do espaço multiuso, que serve como palco ao ar livre. A praça foi construída pelo desejo de moradores do entorno de fazer um espaço de convívio e lazer no bairro. Rosângela Miranda, enfermeira e moradora de um prédio em frente ao viaduto, ficava transtornada com a quantidade de entulho de todo tipo jogado no lugar.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/ABRK6DSMCRFYRG7JIZ2YZMSGP4.jpg?quality=80&auth=74fd87bdd1a3a66f6441e70f9123a6ea3b8d62c207c646577e050f5427f32380&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/ABRK6DSMCRFYRG7JIZ2YZMSGP4.jpg?quality=80&auth=74fd87bdd1a3a66f6441e70f9123a6ea3b8d62c207c646577e050f5427f32380&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/ABRK6DSMCRFYRG7JIZ2YZMSGP4.jpg?quality=80&auth=74fd87bdd1a3a66f6441e70f9123a6ea3b8d62c207c646577e050f5427f32380&width=1200 1322w)
“Era muito lixo, muita mosca”, resume. Rosângela queria dar um lugar mais acolhedor para seu filho, Gael, que estava prestes a nascer. Há um ano e meio, ela e o marido aproveitaram a limpeza que a prefeitura fez em um fim de semana e organizaram um mutirão para coletar vasos com plantas entre os vizinhos.
Espada de São Jorge, boldo, lança de ogum, pé de rosas, pé de maracujá e mais árvores como abacateiros e goiabeira começaram a brotar pelo suor e esforço do casal e de amigos que começaram a surgir no movimento espontâneo.
A vendedora da loja de itens para bebês Antonia Curci é uma das participantes aguerridas. O bancário aposentado Wilson Cunha é outro. Os dois formam uma dupla de zeladores, que passam boa parte de seus dias limpando a praça e regando as plantas. Outros prestativos vizinhos ajudam como podem. O lugar tem espírito coletivo. Um varal com luzinhas coloridas foi instalado e é aceso no final da tarde.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/B5SVBMGPLRCNZHESGBC3CWOGEQ.jpg?quality=80&auth=8d935301accb7dc41b46c4e949abfd052d5b87cf83fb08a06ca83efcb4d38289&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/B5SVBMGPLRCNZHESGBC3CWOGEQ.jpg?quality=80&auth=8d935301accb7dc41b46c4e949abfd052d5b87cf83fb08a06ca83efcb4d38289&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/B5SVBMGPLRCNZHESGBC3CWOGEQ.jpg?quality=80&auth=8d935301accb7dc41b46c4e949abfd052d5b87cf83fb08a06ca83efcb4d38289&width=1200 1322w)
Neste cenário apareceu o diretor teatral Marcelo Soler e sua Cia. Teatro Documentário, grupo do bairro do Bixiga que tem em seu cerne trabalhar com atores profissionais e amadores. Eles buscavam fomento para realizar oficinas pela cidade, em “outras encruzilhadas” da metrópole, como diz Soler. Uma dessas oficinas teve um resultado cênico que foi a apresentação na praça.
“Mais de 150 pessoas vieram assistir a essa apresentação. Aí percebi que tínhamos que eleger esse espaço como local final do projeto.” Soler lembra também que, em parceria e com a autorização dos moradores, a companhia teatral foi fazendo algumas mudanças e melhorias como parte da cenografia de seu “palco”.
Uma encruzilhada foi pintada. A cor vermelha, muito presente no figurino dos atores, apareceu no chão e nos muros. O pequeno restaurante que serve baião de dois em frente à praça abastecia os mais de trinta artistas, entre atores, músicos e produção. “Foi uma forma de reforçar e fortalecer o comércio local”, destaca Soler. O trabalho de apanhadores de recicláveis, alguns em situação de moradia de rua embaixo do viaduto, foi de muita importância na construção da praça e retirada do lixo.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/C7NBV57IG5HDPEZOMVHAFQ56BI.jpg?quality=80&auth=375c9a8947c77840efba705e55e72198474a3947e45470d9aacc6a39f6a74d93&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/C7NBV57IG5HDPEZOMVHAFQ56BI.jpg?quality=80&auth=375c9a8947c77840efba705e55e72198474a3947e45470d9aacc6a39f6a74d93&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/C7NBV57IG5HDPEZOMVHAFQ56BI.jpg?quality=80&auth=375c9a8947c77840efba705e55e72198474a3947e45470d9aacc6a39f6a74d93&width=1200 1322w)
A peça discute várias questões a partir da morte violenta de José Miranda Rosa, o Mineirinho. O apagamento de culturas não hegemônicas “como as afro brasileiras e indígenas”, segundo o diretor, para atender “às culturas hegemônicas, ocidentais”, é uma delas. Ainda segundo Soler, “um tiro só bastava, os outros doze mataram a ginga, a malandragem, a alegria. O que se valorizou foram as armas, a não-alegria, o não-gingado.”
“Fazemos o cruzamento do olhar de Clarice Lispector, pensamento ocidental, com referências da cultura popular, como a capoeira, as religiões de matrizes africanas, a congada”, diz. Na peça, são mencionados os jornais da época noticiando de forma sensacionalista os tambores de macumba no Morro da Mangueira após o anúncio da morte de Mineirinho.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/TNOOXAEUTNFXBMXMXO2ZYG2ZZA.jpg?quality=80&auth=a2334cc151583fc0d3bb7415d0835321eba0154717542f21c2f8fade97116cf4&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/TNOOXAEUTNFXBMXMXO2ZYG2ZZA.jpg?quality=80&auth=a2334cc151583fc0d3bb7415d0835321eba0154717542f21c2f8fade97116cf4&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/TNOOXAEUTNFXBMXMXO2ZYG2ZZA.jpg?quality=80&auth=a2334cc151583fc0d3bb7415d0835321eba0154717542f21c2f8fade97116cf4&width=1200 1322w)
Ele tinha no bolso, quando morreu, uma oração de Santo Antônio (no sincretismo, associado a Exu). O surgimento dos esquadrões da morte, que faziam justiça com as próprias mãos e mais tarde deram lugar às milícias, também é mencionado na peça.
As apresentações, gratuitas, acontecem todos os sábados e domingos e vão até o próximo dia 22 de julho, sempre em dois horários: às 14h e às 16h. Recomenda-se que o público chegue meia hora antes.
Como uma metrópole pulsante, que precisa de mais espaços e iniciativas como essa, há de tudo: gente como o jornalista aposentado Leônidas Cajé, de 68 anos, morador da Rua Santo Amaro, próxima da “encruzilhada”, que passava pela vizinhança e acabou ficando.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/OWWLEW5R5BASTGOYRCUCT7IUSY.jpg?quality=80&auth=540724c7cf8578baeaf61d767529dc8c5800a3221d84d6af508162f0d957fa51&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/OWWLEW5R5BASTGOYRCUCT7IUSY.jpg?quality=80&auth=540724c7cf8578baeaf61d767529dc8c5800a3221d84d6af508162f0d957fa51&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/OWWLEW5R5BASTGOYRCUCT7IUSY.jpg?quality=80&auth=540724c7cf8578baeaf61d767529dc8c5800a3221d84d6af508162f0d957fa51&width=1200 1322w)
“Me chamou a atenção, achei que era um ensaio da Vai-Vai”, disse ele, que filmava com olhar curioso boa parte das cenas. Há também gente que veio especialmente para assistir, caso da atriz e locutora Lívia Camargo, que foi prestigiar os colegas.
No meio da apresentação, um dos atores amadores, Wilson Cunha, declama a história da praça de nome popular “Amizade”. Ele relembra o esforço da enfermeira Rosângela e a vontade de ter um lugar melhor para seus filhos no bairro. Sua participação mostra que as encruzilhadas da vida e da cidade também podem ser espaço de encontro e cultura.
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/6EIGYXBHWNFIPPJRNC24CUWWTY.jpg?quality=80&auth=0326f45fd4a8ecb17e756f610c519345f982f4dec01aa95d06a5bac28d347950&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/6EIGYXBHWNFIPPJRNC24CUWWTY.jpg?quality=80&auth=0326f45fd4a8ecb17e756f610c519345f982f4dec01aa95d06a5bac28d347950&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/6EIGYXBHWNFIPPJRNC24CUWWTY.jpg?quality=80&auth=0326f45fd4a8ecb17e756f610c519345f982f4dec01aa95d06a5bac28d347950&width=1200 1322w)
Serviço: ‘Cavalo Bravo não se amansa’
- Local: Rua Professor Laerte Ramos de Carvalho, 17, Bixiga
- Sábados e domingos, até dia 22 de julho, às 14h e às 16h
- Entrada gratuita
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/BUG2MHDXDVHR7ESSNCZJIXULEQ.jpg?quality=80&auth=a63ceb10d08632fe0f4ac6bb91a4ef67fb556203a10028d5f7b403669e8a2486&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/BUG2MHDXDVHR7ESSNCZJIXULEQ.jpg?quality=80&auth=a63ceb10d08632fe0f4ac6bb91a4ef67fb556203a10028d5f7b403669e8a2486&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/BUG2MHDXDVHR7ESSNCZJIXULEQ.jpg?quality=80&auth=a63ceb10d08632fe0f4ac6bb91a4ef67fb556203a10028d5f7b403669e8a2486&width=1200 1322w)
![](https://www.estadao.com.br/resizer/v2/57PKQGSZMVGQVFGT4ARCD6DJCY.jpg?quality=80&auth=e077d878861edd57b1aa3ff8b6f42c4668a2367bf76dfb5041258eccd4c98901&width=380 768w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/57PKQGSZMVGQVFGT4ARCD6DJCY.jpg?quality=80&auth=e077d878861edd57b1aa3ff8b6f42c4668a2367bf76dfb5041258eccd4c98901&width=768 1024w, https://www.estadao.com.br/resizer/v2/57PKQGSZMVGQVFGT4ARCD6DJCY.jpg?quality=80&auth=e077d878861edd57b1aa3ff8b6f42c4668a2367bf76dfb5041258eccd4c98901&width=1200 1322w)