Músicas de Chico Buarque embalam espetáculo em SP; elenco conta bastidores e histórias do cantor

‘Estadão’ ouviu dez nomes da equipe do musical ‘Nossa História com Chico Buarque’, que estreia em SP nesta quinta-feira, 30, no Sesc Pinheiros

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Em 2016, o diretor Rafael Gomes ensaiava Gota d’Água [A Seco], versão do musical de Paulo Pontes (1940-1976) e Chico Buarque, escrito em 1975 sob a inspiração da tragédia Medeia, de Euripedes. Só que uma questão não saía de sua cabeça. Se no clássico grego, a personagem-título, depois de matar os filhos, sai livre pelo mundo, por que na adaptação, que rebatizou a protagonista, Joana comete suicídio? Só Chico poderia responder.

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Contatado pela produção, o compositor propôs um encontro em seu apartamento, no Rio de Janeiro, em um domingo à noite. Tomados pela ansiedade, Gomes, a atriz Laila Garin e a produtora Andréa Alves saíram do elevador e encontraram o anfitrião à espera na porta, longe de qualquer idealização que rondasse a fantasia dos convidados. Os cumprimentos tímidos se seguiram e, reforçando o clima casual, Chico perguntou: “Vocês querem um suco de mamão?”. Todos aceitaram, claro.

Conversa vai, conversa vem, Gomes, Andréa e Laila seguiram encantados com o papo até achar a hora de perguntar por que ele e Pontes mataram Joana. “Como se fosse a pessoa mais comum do mundo, Chico respondeu que não se lembrava, que Pontes chegou com o texto em prosa pronto e ele se limitou a colocá-lo em versos”, conta Laila ao Estadão, rindo. “Descobrimos que Chico, como todo mortal, também se esquece das coisas.”

Construção

Esta noite é reconstituída tanto por Gomes quanto por Laila quando são indagados sobre passagens de suas vidas que envolvam Chico ou a sua obra. Rafael Gomes foi o garoto que, segundo a lenda familiar, cantava de cor A Banda aos 3 anos, e Laila Garin, desde a adolescência, ouvia sem cansar uma fita cassete com Bibi Ferreira interpretando as falas de Gota d’Água que caberiam em sua boca no futuro.

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O musical 'Nossa História com Chico Buarque' estreia em São Paulo nesta quinta, dia 30 Foto: Renato Mangolin/Divulgação

Quase uma década depois, os dois se reencontram em um espetáculo criado para marcar os 80 anos do artista, celebrados em junho passado. O musical Nossa História com Chico Buarque estreia em São Paulo nesta quinta-feira, 30, no Sesc Pinheiros, com um elenco de dez atores e atrizes que se revezam por vários personagens; cada um faz pelo menos três tipos diferentes.

A peça é ambientada em 1968, 1989 e 2022, épocas que remetem a períodos políticos intensos, para narrar a trajetória entrecruzada de duas famílias. O ponto de partida é a amizade entre Beatriz e Carolina, que, em 1968, são vividas por Larissa Nunes e Luísa Vianna, respectivamente. A primeira namora o irmão da outra (papel de Felipe Frazão), um cantor envolvido na luta contra os militares. Construção, O Que Será, Roda Viva, Tatuagem e A História de Lily Braun estão entre os clássicos que permeiam da trilha sonora da montagem, que reúne ainda cinco instrumentistas no palco.

Cantor e compositor Chico Buarque durante a turnê 'Que tal um samba?', em São Paulo, em 2023 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Além de dirigir, Gomes é coautor do texto junto de Vinicius Calderoni. “Tenho o Chico como um herói, sou um adorador de sua obra e sua vida desde pequeno e é como se eu estivesse me preparando a vida inteira para esse trabalho”, afirma Calderoni, que, além de dramaturgo, é músico e integra a banda 5 a Seco. “Chico sempre foi a perfeição da forma, o lugar mais poderoso que a palavra pode ocupar, e comecei a estudar as suas canções, destrinchar letras e consumir todas as reportagens ou livros sobre ele antes da adolescência.”

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O diretor de movimento Fabrício Licursi e o ator Artur Volpi também resgatam histórias de infância. Licursi recupera as viagens de carro com os pais, em que ia no banco traseiro ao lado dos dois irmãos. Sua mãe sempre foi apaixonada por Chico a ponto de despertar ciúme no marido e causar uma disputa em torno das fitas cassetes que rodariam durante as viagens. Seriam as do Chico ou as da banda Bee Gees, as preferidas do pai?

'Nossa História com Chico Buarque' é ambientado em 1968, 1989 e 2022 Foto: Renato Mangolin/Divulgação

Paratodos

Volpi, por vez, traz à tona as primeiras idas ao teatro, uma delas para ver a peça Os Saltimbancos, criação do italiano Sergio Bardotti e do argentino Luis Enriquez Bacalov, vertida para o português por Chico. “Eu ouvia sem parar o CD, decorei todas as falas e as músicas e até hoje sei a peça de cabo a rabo”, confessa. “De algum jeito, foi uma formação musical para mim porque tem uma certa didática nas canções dos Saltimbancos e treinei o ouvido com as escutas repetidas.”

O diretor musical Alfredo Del-Penho é outro que descobriu Chico na infância. Uma história profissional, entretanto, é guardada com emoção. Em 2014, Del-Penho abriu um financiamento coletivo para viabilizar a produção de dois discos que tentava lançar há dez anos. Quando recebeu a planilha das mais de 800 pessoas que depositaram dinheiro para o projeto, ele quase caiu ao ler o nome de Chico. “Lógico que eu tinha divulgado para muita gente, mas não para ele e aquilo me serviu como uma enorme motivação”, lembra.

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A atriz Larissa Nunes, uma das intérpretes da personagem Beatriz, remete sua formação profissional à descoberta do cantor e compositor. Sua família sempre ouviu música, mas Chico, assim como os demais nomes da tradicional MPB, não estava entre os preferidos na casa em cresceu, na periferia paulistana. “Aos 14 anos, eu me mudei para o centro para fazer teatro e, por causa de um trabalho, ouvi Chico com João e Maria”, conta. “Eu me encantei, logo descobri Construção e minha lembrança mais viva é descer a Rua da Consolação ouvido suas músicas a caminho dos ensaios.”

Heloísa Jorge, que também representa uma das Beatriz, relaciona a obra do Chico a um momento de luto e transformação. A artista perdeu a mãe aos 18 anos, às vésperas de prestar o vestibular de artes cênicas na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Na prova prática, Heloísa recebeu a tarefa de apresentar um trecho da peça A Gaivota, de Anton Tchekhov, e cantar Gota d’Água. “Estava destruída pela perda da minha mãe, mas tenho a forte memória de como a banca me olhava no exame, eu nunca cantei com tanto sentimento”, recorda. “Tenho a sensação de que expurguei toda a minha dor naquela canção e foi o Chico quem me fez passar no vestibular.”

‘Nossa História com Chico Buarque’ está em cartaz no Sesc Pinheiros Foto: Renato Mangolin/Divulgação

Em 1994, Odilon Esteves dava os primeiros passos como ator e nunca tinha visto Chico Buarque no palco. A passagem do show Paratodos por Belo Horizonte seria a oportunidade de aplaudir o ídolo, mas o ingresso não cabia no seu bolso. O jovem ator, então com 16 anos, foi convidado para o seu primeiro trabalho, uma contação de histórias do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, em um shopping. Seriam duas semanas com uma jornada diária de oito horas. “O cachê que recebi era exatamente o valor do ingresso e fiquei tão ansioso que assisti ao show afônico”, lembra. “Foi a primeira vez que entendi o quanto valia a pena trabalhar para usufruir de uma experiência artística.”

Experiente no universo do compositor, a atriz Soraya Ravenle, que interpreta uma das Carolinas, participou de outros três espetáculos relacionados a Chico ao longo de sua carreira. Em 2003, nos bastidores do musical Ópera do Malandro, no Teatro Carlos Gomes, no Rio, ela viveu uma sensação que demorou a crer que fosse verdade. “Sabe aquela rodinha, uma espécie de oração, que os elencos costumam fazer antes de entrar em cena? Pois é, naquela noite, Chico apareceu, foi na coxia e, quando vi, estava de mãos dadas comigo na rodinha”, conta. “Quase não respirava, enquanto um terremoto passava pelo meu corpo e minha alma”, completa.

O homenageado ainda não viu Nossa História com Chico Buarque. Na temporada carioca, no segundo semestre do ano passado, duas de suas filhas e uma das netas ocuparam lugares na plateia. “Quem sabe ele não vem aqui em São Paulo? Caso a gente se encontre, vou tentar transmitir certa normalidade”, brinca Soraya.

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Nossa História com Chico Buarque

  • Onde: Sesc Pinheiros (Teatro Paulo Autran) – Rua Pais Leme, 195, Pinheiros
  • Quando: Quinta a sábado, 20h; domingo, 18h - Até 28 de fevereiro
  • Ingressos: sescsp.org.br
  • Preço: R$ 21 a R$ 70
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