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Na batalha de robôs contra comediantes, a inteligência artificial está ganhando

Em batalhas e shows de stand up comedy, humoristas estão experimentando o ChatGPT e outros modelos. No entanto, os mais inspirados não devem temer por seus empregos - ainda

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Por Jason Zinoman

THE NEW YORK TIMES - No mês passado, na lotada sala dos fundos de um bar no bairro do Brooklyn, em Nova York, o que estava em jogo era o destino da humanidade.

Ou pelo menos era assim que Matt Maran, comediante do Queens, estava definindo a situação. Ele pediu apoio da torcida durante aquilo que foi anunciado como a primeira batalha entre a inteligência artificial e um comediante humano.

Matt Maran enfrentou uma versão AI de Sarah Silverman. Foto: Hiroko Masuike/The New York Times

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Não deu certo. Maran perdeu a plateia logo de início, com uma piada que dizia que as mulheres não são engraçadas. Seu oponente era uma versão ChatGPT de Sarah Silverman, a comediante que, aliás, processou a empresa desenvolvedora do chatbot por violação de direitos autorais no início da semana passada. Numa tela perto dali, a cabeça dela balançava de um lado para o outro. “Por que o humano ficou olhando para o copo de suco de laranja?”, o bot perguntou com algo que lembrava sua voz juvenil. “Porque estava tentando se concentrar”. Aí, estranhamente, proclamou: “Fritei!”

Nenhum dos lados estava rindo muito, mas a IA era mais imperturbável, passando de piada a piada com o ritmo de um metrônomo. Algumas de suas tiradas eram comparações simples (“Você é tão afiado quanto uma faca de manteiga”) e pelo menos uma não fez o menor sentido, mas o bot arrancou gargalhadas com uma piada que usava detalhes da vida de Maran: “Você é de Long Island e perdeu a virgindade com uma prostituta. Isso é que é começar mal e continuar pior”. Maran parecia derrotado antes mesmo de a imagem de Silverman ser substituída por uma dele. Depois foi fritado pela versão digital de si mesmo. A humanidade perdeu todos os rounds.

É tentador concluir que essa derrota foi um sinal da iminente ascensão do robô na comédia, mas o confronto mais lembrava seu avô jogando xadrez no computador do que a disputa entre Garry Kasparov e o Deep Blue. Apesar de tudo, o evento deixou claro um ponto importante sobre uma das muitas ansiedades atuais em torno da IA: se o domínio humano sobre o humor chegar ao fim, a culpa vai recair tanto na nossa complacência quanto no progresso tecnológico.

A batalha entre AI e Matt Maran teve momentos engraçados. No final, a humanidade perdeu. Foto: Hiroko Masuike/The New York Times

Humanos ficando para trás

Até recentemente, a comédia era vista como tão essencialmente humana que se supunha que a IA arrasaria a humanidade antes que conseguisse arrasar numa noite de stand-up. Mas, desde o surgimento de grandes modelos de linguagem como o ChatGPT, há menos de um ano, essa ideia não se aplica mais.

A potencial substituição dos humanos pela IA virou uma questão central nas disputas trabalhistas em Hollywood. Jimmy Kimmel contou piadas escritas pelo ChatGPT em seu programa em fevereiro, e cientistas da computação até então céticos agora estão prevendo que será apenas uma questão de anos até que os robôs produzam comédia profissional.

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O talentoso escritor de quadrinhos Simon Rich pareceu abalado depois de usar o code-davinci-002, um bot não disponível ao público. Quando ele pediu uma manchete sarcástica para o conflito iniciado pela Rússia, o bot respondeu: “Especialistas alertam que a guerra na Ucrânia pode ficar ainda mais chata”. Rich disse que não achava que conseguiria fazer melhor, “com certeza não de imediato e de graça”.

Não há dúvida de que a IA consegue pensar mais rápido do que qualquer comediante e estudar a mecânica das piadas com mais agilidade do que nunca. E mesmo que a ironia e o tom ainda pareçam desafiadores, seu senso de humor só vai melhorar. Vale lembrar que, na década de 1990, os supercomputadores perdiam para os grandes mestres do xadrez, mas depois começaram a vencer. Comédia, porém, não é xadrez. E a capacidade de a IA gerar intencionalmente arte engraçada é uma questão tanto filosófica quanto tecnológica.

Aprendizado por imitação

O argumento mais comum contra as máquinas é que, por princípio, elas não apresentam ideias novas, só coletam e sintetizam as antigas. E a comédia, seja Tim Robinson, South Park ou Ali Wong, depende da novidade e da surpresa.

Tony Veale, cientista da computação que escreveu um livro sobre comédia e IA, Your Wit Is My Command (Sua astúcia é meu comando em tradução livre), está impressionado com a capacidade dos novos modelos de linguagem para imitar gênero e voz, analisar e gerar metáforas, explicar-se e até mesmo admitir erros.

Ele está otimista com a possibilidade de os computadores fazerem piadas de nível profissional em cinco anos e, quando indagado sobre a originalidade, respondeu que o processo criativo da IA não é diferente do de artistas iniciantes. “Muitos comediantes, como Eddie Murphy e Jerry Seinfeld, treinaram ouvindo e repetindo os primeiros álbuns de comédia de Bill Cosby”, escreveu ele por e-mail. “Todos nós aprendemos com aqueles que queremos imitar e transcender”.

Jason Woliner criou Dale, um bot alimentado por ChatGPT e software de síntese de fala. Em uma festa em sua casa, os convidados encheram Dale de perguntas. Foto: Charles McTavish/The New York Times

Ele tem razão. Mais que isso: tem muita comédia que não vai além do estágio da imitação. As pessoas gostam das piadas de sempre. Sitcoms e stand-ups muitas vezes são cópias de outras coisas. A comédia de atualidades geralmente se baseia em frases estereotipadas e ritmos previsíveis. É por isso que a forma mais vulnerável à disrupção (e à perda de empregos) talvez seja a televisão noturna, material que os comediantes às vezes levam meses para desenvolver.

Na vanguarda deste trabalho está Joe Toplyn, que estudou engenharia e editou The Harvard Lampoon antes de escrever piadas para Late Night with David Letterman, onde ajudou a criar o conceito de jogar melancias de um prédio de cinco andares (uma ideia bem humana). Toplyn criou um bot chamado Witscript, que pega uma manchete ou pensamento, cospe três piadas e depois escolhe a melhor.

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Os comediantes sempre foram mais rápidos do que outros artistas para experimentar as tecnologias - Whitney Cummings trouxe uma estranha versão robótica de si mesma para contar piadas no seu especial da Netflix em 2019 - e quase todos com quem conversei que tinham usado alguma forma de IA fazer piadas pareceram desapontados.

Bill Oakley é um veterano de Os Simpsons que, junto com Josh Weinstein, produziu muitos episódios clássicos, entre eles Quem matou Mr. Burns?. Ele pediu que um bot escrevesse um episódio no estilo deles. O resultado, sobre uma infestação de abelhas, ficou “no nível de um fã da sétima série”, disse ele.

Chris Onstad, que escreve o quadrinho Achewood, teve mais sucesso, em parte porque trabalhou junto com engenheiros na criação de um bot que emitiria uma coluna de conselhos na voz de um de seus personagens. Mas ele ainda vê a IA mais como uma ferramenta do que como uma ameaça. “Está servindo para fan fiction e pulp”, ele me disse durante uma videochamada, “mas não para literatura de alta qualidade”.

O problema é que vivemos numa época que se deleita com fan fiction e pulp e muitas vezes negligencia a literatura. A internet substituiu parte do poder dos curadores e editores humanos por algoritmos - essencialmente uma forma mais simples de IA - que recomendam conteúdo no Spotify ou no YouTube. Na mídia e na cultura de hoje, quem ganha mais é a produção rápida e em volume, uma abordagem que já beneficia mais os computadores do que os humanos. À medida que a arrogância mudou de Hollywood para o Vale do Silício e as graduações em Inglês ficaram cada vez mais escassas, nossa cultura perdeu a confiança nas qualidades inefáveis e essenciais da criatividade humana.

Comédia na teoria

De Platão a Hobbes e Freud, os intelectuais há muito oferecem teorias da comédia. Mas as últimas duas gerações testemunharam um aumento dramático no número de pessoas que tratam a arte como um problema a ser resolvido, um mistério a ser decodificado e ensinado. Uma indústria de gurus, críticos e educadores desmonta as piadas em componentes. O grupo de comédia Upright Citizens Brigade bombou por um tempo não apenas porque seus programas se baseavam no sucesso de suas aulas, mas também porque criava um sistema de comédia que se apoiava mais na estrutura e nas regras do que seus predecessores na improvisação. Numa entrevista que agora parece reveladora, Ian Roberts, um de seus cofundadores, comparou a abordagem do UCB aos “princípios da física”.

Existem elementos da matemática na comédia e na poesia (o pentâmetro iâmbico requer uma certa capacidade de contar), mas não devemos reduzi-las a isso. O subconsciente, fonte de muita criatividade, não pode ser mapeado com tanta precisão assim. E quanto mais você olha para a grande arte, mais percebe que não dá para prever nem explicar boa parte dela. Isso vale especialmente para a comédia. Os aspectos mais engraçados costumam ser aqueles que resistem à lógica. A IA vai conseguir entender o sarcasmo bem antes do pastelão.

Para usar o exemplo mais popular da temporada, a Barbie Estranha é a mais engraçada. Dito isso, a Barbie estereotipada recebe um tipo diferente de risada, que pode ajudar a explicar aquela derrota dos humanos para a IA no começo desta história. Personagens rígidos tentando e não conseguindo escapar de sua situação mecanicista são classicamente engraçados. (Basta lembrar de Charlie Chaplin preso nas engrenagens ou de Lucille Ball na fábrica de chocolate). Henri Bergson, um dos primeiros grandes filósofos modernos do humor, que foi sábio o suficiente para rejeitar a ideia de “aprisionar o espírito cômico em uma definição”, viu a comédia como um corretivo para o automatismo da Era Industrial. Ele acreditava que ríamos em resposta às pessoas agindo como máquinas.

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Bergson via a comédia como algo distintamente humano - talvez porque entendesse que é profundamente, inescapavelmente social. Não apenas rimos mais em grupos, como também aquilo que achamos engraçado depende de quem está contando a piada. Uma piada sobre um acidente de carro será hilária para uma pessoa e ofensiva para outra. A inteligência artificial pode criar piadas, mas é preciso inteligência emocional para fazê-las funcionar. O que faz as pessoas rirem não é só a piada: é a conexão com a consciência humana que a conta.

Talvez o público possa fazer uma conexão semelhante com um computador sofisticado do futuro, mas a pegadinha para o humor da IA é que, quanto menos parecer humano, menos engraçado vai ficar - mas quanto mais parecer humano, mais bizarro vai ficar. Depois da revolução dos robôs, o que pode salvar a comédia humana da irrelevância são nossos próprios preconceitos tribais profundamente arraigados. Nós gostamos de rir entre nós - e de nós mesmos.

Hoje a conversa sobre IA gira em torno de cenários apocalípticos, mas imagine esse desdobramento utópico: os bots não substituem os comediantes, só se tornam ferramentas úteis. Parece realista. O ideal, acho eu, é que a inteligência artificial incentive os comediantes a abandonar as formas mais genéricas e previsíveis de seu trabalho e os inspire a serem mais excêntricos, pessoais e originais. A competição de programas de computador cada vez mais inteligentes vai forçar os artistas não apenas a confiar mais na intuição do que na imitação, mas também a pensar mais sobre o que faz com que si mesmos - e seus trabalhos - sejam distintamente humanos.

Nossa vantagem na batalha cômica contra as máquinas é que as falhas humanas são sempre mais engraçadas do que qualquer tipo de perfeição. E se a IA forçasse a comédia a ser mais ambiciosa? Um crítico tem o direito de sonhar. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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