Algumas memórias bastante antigas têm voltado com intensidade à mente da atriz Nathalia Timberg nas últimas semanas. Uma delas remete ao ano de 1945, quando morava no bairro carioca da Tijuca em uma casa que, na frente, dava para uma mangueira, e ouviu pelo rádio a notícia sobre o fim da Segunda Guerra Mundial. “Eu fiquei tão feliz que comecei a dançar debaixo daquela árvore”, recorda ela, que tinha 16 anos recém-completados. “Era o começo de uma nova vida, embora eu não dimensionasse a real importância do fato, mas, como sou de uma família judaica, sempre tive um entendimento do que pode ser bom ou ruim.”
Nathalia completou 95 anos no último dia 5, lúcida e em plena atividade, o que valida a relevância de uma carreira de sete décadas solidificada em espetáculos marcantes e amplificada nas novelas de televisão. “Esse meu entendimento das coisas me levou a construir uma trajetória exigente, nunca aceitei uma imposição com facilidade e, com o tempo, vi a diferença que isso faz”, reflete.
Nesta sexta, dia 16, a intérprete estreia A Mulher da Van, comédia dramática do inglês Alan Bennett dirigida por Ricardo Grasson, que ocupa o Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros. Como em uma grande festa, a estrela está cercada dos atores Caco Ciocler, Cléo De Páris, Duda Mamberti, Eduardo Silva Lilian Blanc, Noemi Marinho e Roberto Arduin para mostrar a história que, no cinema, teve como protagonista a inglesa Maggie Smith em 2015. “Recebi esse texto há quinze anos e achei bom, guardei, não joguei na cesta do lixo”, conta, irônica. “Esperei o momento certo e, com o horror da pandemia, enxerguei a hora de falar das relações humanas e da tolerância com o outro.”
A Mulher da Van é inspirada na história real de uma idosa acumuladora que vive dentro de uma caminhonete e, de tempos em tempos, estaciona o veículo nas ruas de vizinhanças diferentes. Por conta da personalidade forte, ela depara com a hostilidade dos moradores que fazem de tudo para expulsá-la dos arredores. Quando chega ao bairro de Camden Town, em Londres, a senhora conquista a simpatia do escritor Alan Bennet (interpretado por Caco Ciocler e Eduardo Silva, em diferentes situações na peça), que permite que use o seu banheiro e, diante da ameaça de expulsão movida pelos habitantes da rua, deixa que a van fique estacionada em sua garagem.
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“É uma mulher determinada, humana e acho importante falar de uma personagem que espelha o comportamento dos outros e não só o de nós mesmos, os artistas”, justifica. “É uma peça que não tem um ‘dó de peito’, não carrega imposições políticas ou traz, por exemplo, uma cena de estupro, ela pega pelo conjunto de sutilezas.”
A atriz está há dois meses em São Paulo, sem sequer pisar no Rio de Janeiro para visitar sua casa, e tem visto produções teatrais que lhe agradaram. Ela aplaudiu o drama O Vazio na Mala, encenação de Kiko Marques, e a comédia Esse Maldito Fecho-Éclair, comandado pelo mesmo Grasson com quem trabalha em A Mulher da Van. Matou as saudades da amiga Fernanda Montenegro ao assistir a sua leitura sobre a escritora francesa Simone de Beauvoir e não economiza elogios para Tio Vânia, peça dirigida por Eduardo Tolentino de Araujo. “São raros os diretores que se propõem a armazenar um conteúdo vida afora e se tornam capazes de desenvolvê-lo em cena como Tolentino”, observa. “Ele não mudou uma vírgula e trouxe Tchekhov para os assuntos de hoje.”
Ao longo da sua história, Nathalia soube valorizar os conteúdos acessados e usá-los a seu favor. Filha de um pai holandês e de uma mãe belga, que construíram a vida no Brasil, ela nasceu no meio de três irmãos e teve uma formação intelectual privilegiada que, reconhece, aproveitou bem. “Quando somos colocados muito novos em contato com uma sociedade múltipla, como é a judaica, aprendemos a prezar o senso crítico e um discernimento que não admite coisas feitas de qualquer jeito”, explica.
Então, se era para ser artista, a jovem Nathalia, logo depois dos 20 anos, investiu nos estudos de interpretação em Paris e, de volta ao País, não tardou a exercitar o ofício no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo, companhia tão interessada nessa formação, que integrou por seis anos. “Quando viajei, o teatro passava por um ressurgimento na Europa por causa das transformações do método criado pelo russo Constantin Stanislavski”, diz. “A percepção múltipla de culturas me levou para a universalidade, para a compreensão de um todo que jamais me individualizou ou me tirou da realidade.”
O mesmo rigor aplicado ao teatro foi exigido dos seus pares quando Nathalia estreou nas novelas na década de 1960, passando pela Globo, Tupi e Excelsior. Por causa do tal discernimento, viveu momentos de felicidade, segundo ela, fez sucesso em A Sucessora (1978), Vale Tudo (1988), O Dono do Mundo (1991), Força de um Desejo (1999) e Amor à Vida (2013), na Globo, mas, quando se fez necessário, comprou brigas com os diretores.
Em uma das saídas da Globo, ouviu de um executivo que jamais voltaria a ser chamada – o que, claro, não se cumpriu –, e, ciente do seu caráter, seguiu firme no teatro, além de fazer trabalhos na Rede Manchete e no SBT. “Qualquer intolerância pode virar uma briga de poder e colocar tudo a perder, não é à toa que temos guerras até hoje”, diz. “Mas não é porque as coisas estão tortas que vou me entortar para me adequar.”
Nathalia, porém, não guarda rancores e nunca se cobrou chegar a uma longevidade como, para ela, faz a maioria dos mortais. “Imagina se aos 50 anos ficava pensando em como seria a vida aos 90, tinha tanta coisa para me ocupar”, declara. “A minha única preocupação é deixar o cérebro ativo, e a repetição constante do teatro me ajuda até hoje.”
A idade, claro, cobra outros preços e, vários dias, depois de tanto ensaio, a artista sente dores pelo corpo, especialmente nos quadris e nas pernas. “Mas não é uma dor ou outra que vai me mandar parar”, avisa ela, que usará na peça a mesma cadeira de rodas com que circula pela cidade. Uma noite dessas, foi a uma tradicional cantina italiana da região central, ávida pelo espaguete ao sugo de lá que sempre adorou e saiu decepcionada. “Era o único molho que achava tão bom quanto o da minha mãe, mas, pelo visto, desaprenderam, está ralo e sem gosto”, reclama.
Se tudo continuar próximo ao que está, Nathalia aposta no otimismo e promete pensar, logo depois da temporada de A Mulher da Van, no espetáculo comemorativo dos seus 100 anos, em 2029. “Mas tem que ser algo significativo, se for para abrir a boca e e falar que gosto de ver uma samambaia pingando não vale a pena fazer”, afirma. “O meu maior orgulho é que sou capaz de experimentar o pensamento e estimular os sentidos de outras pessoas.”
Serviço
A Mulher da Van
- Teatro Paulo Autran – Sesc Pinheiros. Rua Paes Leme, 195, Pinheiros.
- Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h.
- R$ 70.
- Até 15 de setembro. A partir de sexta (16).
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