Na primeira vez em que pisou no palco, o ator paulistano Osmar Prado, hoje com 76 anos, mal tinha completado 12. A peça se chamava Nu com o Violino, comédia do inglês Noel Coward, montada em 1959 pela companhia dos atores Nydia Licia (1926-2015) e Sérgio Cardoso (1925-1972).
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Na sua primeira fala, a voz ficou rouca, tornando-se cada vez mais fraca, e exigindo do garoto um esforço redobrado. Apesar da pouca idade, Prado carregava experiência para lidar com imprevistos. Estreara na TV Paulista um ano antes na novela ao vivo David Copperfield e sabia que se projetasse bem a voz terminaria o espetáculo.
O influente crítico Miroel Silveira (1914-1988) publicou em um jornal do dia seguinte um texto pouco simpático ao conjunto da produção, em que falava mal, inclusive, de parte do elenco. Em relação ao jovem Prado, porém, o jornalista foi elogioso ao apontá-lo como “uma agradável revelação, capaz de enfrentar situações inesperadas”. “O recado dele foi dado, significava que eu poderia prosseguir e vivo há 65 anos desta profissão”, recorda o artista.
Com o tempo, Prado entendeu que precisava valorizar o alcance da própria voz ao atingir grandes plateias. O espetáculo O Veneno do Teatro, dirigido por Eduardo Figueiredo, que estreia nesta sexta, 23, no Sesc Santana, é uma reflexão que Prado, em contracena com o ator Maurício Machado, deseja compartilhar com o público.
O texto, escrito pelo espanhol Rodolf Sirera, aborda questões como ética e manipulação em um duelo verbal entre um excêntrico marquês e um ator convidado por este para protagonizar uma peça de sua autoria.
“É uma denúncia sobre esse sistema político e social repleto de canalhices que conhecemos muito bem”, explica. “Sirera criou a peça nos anos de 1970 como crítica à ditadura franquista, mas poderia muito bem tratar dos conflitos atuais da Palestina ou do bolsonarismo no Brasil.”
O Veneno do Teatro, antes de chegar a São Paulo, passou por Belo Horizonte e Brasília e prossegue em excursão nacional a partir de abril. “O meu sonho é correr o Brasil inteiro até o final do ano”, diz Prado, que, além de Machado, divide o palco ainda com o violoncelista Matias Roque Fideles.
O chamado de Figueiredo chegou em dia simbólico para o veterano artista. Convidado para a novela Guerreiros do Sol, do Globoplay, Prado, que teve seu contrato com a Globo encerrado em outubro de 2022, logo depois do fim de Pantanal, não chegou a um acordo financeiro naquela mesma tarde. “Uma pessoa que nem conhecia me ligou para negociar salário por telefone e me ofereceu menos que eu ganhava, imagina, nunca vi uma coisa assim na Globo”, reclama.
Ao tomar conhecimento do texto de O Veneno do Teatro, Prado sentiu que era a hora de romper um hiato de quase dez anos dos palcos, e as palavras do Marquês seriam a resposta para questões entaladas na garganta, como o desrespeito sentido pela classe artística no governo de Jair Bolsonaro.
O ator é o mais desprezado o tempo inteiro, mas é inegavelmente a mais invejada das profissões porque eles, os políticos, se transformam em personagens o tempo todo para convencer os outros a agir em nome de seus interesses.
Osmar Prado
Seu último trabalho, o musical Barbaridade, dirigido por José Lavigne em 2015, em que contracenou com Susana Vieira, Edwin Luisi e Marcos Oliveira, não lhe deixou boas lembranças. “Eu me arrependi, não sei o que estava fazendo lá, porque não é o tipo de teatro que me interessa.”
Nesta época, Prado passava por uma entressafra. Em 2013, o artista temeu que sua voz se calasse de vez ao ser diagnosticado com um câncer na garganta e enfrentou duas cirurgias, três sessões de quimioterapia e trinta outras de radioterapia.
“Pouco antes da operação, perguntei ao médico se havia risco de comprometer a minha fala, porque sem ela estaria acabado, e ele garantiu que nada seria afetado”, lembra. Realmente, a voz de Prado parece intacta, mas, mesmo assim, para a estreia de O Veneno do Teatro, ele praticou uma série de exercícios e garante que não recorreria ao microfone em cena, como boa parte dos atores e atrizes na atualidade. “Acho um horror quando vejo atores de microfone, parece que a peça não é ao vivo, as falas vêm amplificadas por uma caixa de som.”
A superação do câncer, segundo o artista, fez dele uma pessoa melhor, com maior tolerância para se ver e enxergar o mundo. Prado reconhece que nunca foi um profissional fácil de se lidar e sempre rebateu ideias que não lhe agradassem.
Só da Rede Globo saiu três vezes por divergências com a direção, uma delas antes do fim das gravações de um de seus maiores sucessos, o personagem Tião Galinha, da novela Renascer, em 1993. “Eu sou carcamano, nunca topei humilhação na minha carreira e se você comprar briga comigo deve ter a consciência de que vai bater e apanhar.”
Mais de três décadas depois, Renascer voltou como um remake, e o emblemático Tião Galinha é vivido por Irandhir Santos, uma escolha aplaudida por Prado. “O Tião é aquele brasileiro que trabalha e mata a fome, mas não perde a ilusão de que vai ganhar na loteria um dia”, define. “A Globo me sondou para um papel no remake, só que rejeitei de cara por causa do teatro e não seria bom estar perto do Irandhir, poderia atrapalhá-lo na criação do seu Tião.”
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Serviço
O Veneno do Teatro. Sesc Santana. Avenida Luiz Dumont Villares, 579, Jardim São Paulo. Quinta a sábado, 20h; domingo, 18h. R$ 50,00. Até 24 de março. A partir de sexta (23).
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