Os elogios variam, mas invariavelmente terminam com a mesma frase: “Gostava mais do seu pai”. Resta a Bruno Mazzeo e Lúcio Mauro Filho sorrir - e concordar. “Eles eram realmente melhores que a gente e hoje nos servem como farol”, comenta Mazzeo, o quarto filho de sete (há ainda um adotado) de Chico Anysio (1931-2012), considerado um dos principais humoristas brasileiros ao lado de Lúcio Mauro (1927-2019), com quem formou uma dupla emblemática na televisão.
Se não machuca como poderia, a frase serviu ao menos para inspirar o título do primeiro espetáculo em que dividem a cena juntos, Gostava Mais dos Pais, que estreia no Teatro Porto, na sexta-feira, 1°.
Mazzeo e Lucinho (como é conhecido) interpretam cerca de dez personagens e várias versões de si mesmos em uma série de esquetes que entrecruzam suas histórias pessoais com temas contemporâneos, como as barreiras impostas ao humor e a dificuldade de encontrar os seus lugares na era digital, a cultura do cancelamento, a instantaneidade das viralizações e as fake news.
“Lembramos de histórias de nossos pais e mostramos como foram (e são) decisivas na nossa carreira, mas sem apelar para a obviedade”, comenta Lucinho. “Por isso que é uma peça autoral, que traz cenas que só a gente pode fazer, pois traz nossos sentimentos, nossas neuroses. Provavelmente não será montada por outra dupla”, completa Mazzeo. Os atores conversaram com a reportagem em um hotel nos Jardins, às vésperas da estreia da peça.
O plano de dividir o palco acompanha a dupla desde que eles estavam em turnê com 5x Comédia, espetáculo que rodou o País de 2017 a 2019. Apesar de dividirem o camarim, eles não contracenavam juntos porque a peça é formada apenas por monólogos.
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O passado comum, especialmente a forte amizade que unia os pais, em contraponto com os dilemas atuais provocados pelo avanço da tecnologia norteou o espetáculo, criado ao longo daquele período e finalmente escrito por Aloísio de Abreu e Rosana Ferrão a partir de questionamentos levantados pelos protagonistas. A direção é de Debora Lamm.
Mazzeo e Mauro Filho são exemplos brasileiros do que Hollywood convencionou chamar de “nepo babies”, ou seja, filhos de pais famosos cujo sobrenome conhecido pode ser uma propriedade intelectual valiosa. Mas, se alguns apenas viveram da fama herdada, eles conseguiriam trilhar caminhos próprios.
Uma das finalidades do humor é fazer as pessoas olharem para coisas que estão acontecendo na sociedade sob outra perspectiva. E a nossa peça faz uma reflexão sobre a linha tênue que define os limites da comédia e da nossa responsabilidade de estar em sintonia com o nosso tempo. O humor também envelhece.
Lúcio Mauro Filho
Também mudou a forma de se conquistar a atenção do público, especialmente o mais jovem. Mazzeo conta que se tornou fã do youtuber Casimiro a partir dos comentários bem humorados que ele fazia sobre seu time, Vasco da Gama.
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“Ele transmite direto do quarto da casa dele, mas conversa de um jeito que eu não consigo fazer, por mais que eu tenha uma grande bagagem profissional. E, da sua forma simples, Casemiro atinge diretamente o jovem. Em termos de força comunicativa, é o Chacrinha do tempo atual. Eu levo seis meses para escrever um roteiro, enquanto ele grava um vídeo de um minuto e meio e ganha milhões.”
Assim, quando pisarem no palco, Mazzeo e Mauro Filho não sabem que tipo de público estará na plateia. Para o sucesso do espetáculo, esperam que seja mesclado. “Nossos pais são mais lembrados pela Escolinha do Professor Raimundo, que começou como um quadro do Zorra Total, em 1999, e, devido ao sucesso, se tornou um programa de TV autônomo”, conta Mazzeo, que capitaneou uma nova versão da Escolinha em 2015, novamente um êxito de audiência.
Ele interpretou o Professor Raimundo, defendido antes por Chico Anysio, enquanto Lucinho retomou um dos alunos, Aldemar Vigário, criado por seu pai. Mais que divertir, os dois personagens eram instrumentos para que Anysio e Mauro se cutucassem em cena, um duelo verbal quase sem limites, que colocava à prova e também comprovava a resistência da amizade.
Chico Anysio e Lúcio Mauro
“Meu pai adorava ligar para amigos e familiares do Chico para descobrir histórias que seriam reveladas no estúdio, durante a gravação”, conta Mauro Filho. Uma das mais sensacionais lhe foi passada pelo médico Ivo Pitanguy, cirurgião plástico de renome internacional e também membro da Academia Brasileira de Letras. “Ivo se encontrou com meu pai no restaurante Antiquarius, no Rio, e disse que, quando ainda era um estudante residente, trabalhou em Recife, onde operou a fimose do Chico. Foi o bastante para meu pai provocar gargalhadas em todos que estavam presentes na gravação.”
Apesar de amigos do peito, Anysio e Mauro tinham hábitos distintos, segundo os filhos. “Chico era mais recluso, quase não saía de casa, pouco socializava, enquanto meu pai seria hoje o que poderia chamar de alcoólatra de rua: ele jamais bebia em casa, apenas nos bares onde sempre batia o ponto: Antonio’s, La Fiorentina e Antiquarius”, conta Mauro Filho. “Mas, no camarim da Escolinha, eles se trancavam e ficavam horas conversando.”
O cearense Chico Anysio e o paraense Lúcio Mauro se conheceram na década de 1950, quando ambos trabalharam em rádio no Recife, então principal centro de comunicação do Nordeste. Voltariam a se encontrar na Globo, nos anos 1970, especialmente depois da criação do humorístico Chico City, quando a parceria começou a se consolidar.
Os filhos tiveram pouco contato profissional com os “tios”. Mazzeo, por exemplo, só dividiu a cena com Lúcio pai no início do primeiro episódio da nova Escolinha. “Ele vivia um servente e levou o Professor Raimundo para a sala de aula. Foi muito emocionante, especialmente para ele retornar ao programa sem a presença do meu pai”, conta Mazzeo.
Já Mauro Filho foi dirigido por Anysio na peça TV Sátira, em 1995. “Éramos um grupo iniciante, e ele nos apresentou os segredos da comédia, desde a melhor posição em cena até o timing exato das piadas.”
Mudança de geração
A mesma fragilidade apresentada pelos comediantes veteranos diante dos novos talentos que passavam a ocupar seu espaço é compartilhada pelos filhos. “A peça é uma reflexão também sobre o desejo de não remar contra a maré e ao mesmo tempo entender os novos tempos. Ou seja, nós não somos youtubers, nós não sabemos fazer um TikTok. Então, o que a gente faz? Será que ainda vai ter espaço para o que a gente sabe fazer?”, questiona Bruno.
Enxergar o novo é a chave. E também buscar um equilíbrio entre a bagagem que acumulamos e podemos oferecer aos projetos, sempre mantendo as portas abertas para as novidades.
Lúcio Mauro Filho
E, se Chico Anysio deixou uma herança artística de enorme potencial, a financeira ainda é motivo de desavença na família, com disputa judicial entre os filhos e a última mulher do humorista, Malga Di Paula. Segundo ela, Chico teria determinado que ela herdasse seus bens materiais, e que a propriedade intelectual ficasse para os filhos. A Justiça, porém, negou o argumento.
“Na verdade, hoje negociamos as dívidas contraídas por Malga, pois meu pai não deixou nenhuma fortuna. Muito se perdeu, mas ele dizia que, como éramos muitos filhos, não deixaria nada para evitar brigas”, observa Bruno, designado como atual inventariante do Espólio de Chico Anysio, em substituição a Malga.
Gostava Mais dos Pais
- De 1º de março a 14 de abril de 2024 - Sextas e sábados às 20h e domingos às 17h.
- Com Bruno Mazzeo e Lucio Mauro Filho
- Classificação: 14 anos.
- Duração: 90 minutos
- Teatro Porto (Al. Barão de Piracicaba, 740 – Campos Elíseos – São Paulo)
- Valores e ingressos aqui.
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